Trinta anos sem a arte de Walter Smetak

Por Gilson Jorge
Em uma tarde do final maio de 1984, o músico suíço Anton Walter Smetak, 71 anos, pegou a sua moto Yamaha CG 125 e saiu de casa, no São Lázaro, para visitar pela última vez a ex-mulher e os cinco filhos, que viviam não muito longe do local em que ele morava, juntamente com o atual marqueteiro da presidente Dilma Rousseff, o jornalista João Santana, então chefe da sucursal de Veja em Salvador. Desde a separação da baiana Julieta, sua segunda mulher, Smetak dividia com Santana e o filho dele as despesas de uma casa situada no local onde hoje funciona a Rede Bahia.
Abatido por um enfisema pulmonar, depois de décadas fumando cigarros artesanais ou marcas sem filtro, como o antigo Gaivota, Smetak ia se internar para tratamento no Instituto Brasileiro de Investigação do Tórax, mas sabia que não sobreviveria e fez questão de dar instruções aos filhos, que na época tinham entre 20 e 30 anos de idade, sobre como deveriam se ajudar na sua ausência e os exortou a não brigar pelo seu principal espólio: os mais de 100 instrumentos criados por ele, depois que o envolvimento com a Eubiose, um ramo brasileiro da teosofia, o distanciou da música clássica e da busca pelo sucesso.
Certa vez, relembrando o período em que se emocionava a ponto de ir às lágrimas ao executar obras eruditas ao lado da primeira mulher, uma pianista alemã, Smetak disse que aquilo tudo era uma grande bobagem. O homem nascido em uma família de classe média alta em Zurique, que era um virtuoso violoncelista egresso do Conservatório de Viena e que desembarcara no Brasil em 1937, a convite da Orquestra da Rádio Farroupilha de Porto Alegre, despedia-se do mundo desapegado da música erudita. A exceção era Johann Sebastian Bach, por quem ele continuou apaixonado, e a quem se referia como “meu amigo Joseba”, em inegável prova de baianidade adquirida .”Bach é o fundamento de toda a músicamoderna. Tudo que foi composto nos 12 tons passa por ele”, destacou Tuzé de Abreu, músico da UFBA, autor de uma dissertação sobre a obra do amigo suíço e seu principal herdeiro artístico.
Smetak chegou à Bahia em 1957, a convite de Hans-Joachim Koellreuter, músico teuto-brasileiro,que coordenava os Seminários Livres de Música, embrião da Escola de Música da UFBA e que atraiu a Salvador naqueles anos gente do porte de Isaac Karabtchevsky. Era um dos nomes selecionados para impulsionar o momento ímpar que as artes tiveram na Bahia durante o reitorado de Edgard Santos.
Mas a marca que Smetak deixaria no estado começou a ser moldada em São Paulo, no ano de 1946, quando o suíço conheceu Henrique Santos, um baiano que o apresentou à eubiose, versão brasileira da teosofia criada no século XIX pela russa Helena Blavatsky, que une filosofia, religião e ciência. Uma das diferenças é que no caso brasileiro, havia a crença de que o país seria o epicentro de uma nova civilização que surgiria em 2005, com o nascimento do Avatara Maitreya, que seria o responsável pela transformação(o próprio Smetak anunciava que reencarnaria neste ano).
Santos, uma influência definitiva na vida do suíço, tinha suas lendas pessoais. Conta-se que uma vez ele teria pulado um gradil para apanhar uma manga no Passeio Público e acabou perfurado por uma lança, dando origem a um ferimento igual aos atribuídos a Jesus Cristo na cruz, e que depois teria sido milagrosamente cicatrizado.
Em Smetak, as marcas da eubiose permaneceram. Desde a sua conversão, o músico passou a se dedicar também a escrever livros sobre cosmologia, à música microtonal e à criação de instrumentos que representassem o que era, a seu ver, esse novo momento da vida na terra. “A maior composição de todas é o homem”, dizia.  Como violoncelista, ele deu aulas na Emus até a década de 1970, apesar do claro desencanto com a música erudita.
Ao mesmo tempo em que tentava trilhar o seu novo caminho, Smetak ia colecionando desafetos na vida acadêmica. Colegas que não respeitavam a sua nova opção ou que aceitavam o jeito bruto do professor suíço. Os constantes desentendimentos culminaram com o isolamento do maestro para uma sala na antiga Escola De Dança, no prédio em que hoje funciona a Creche da UFBA, na Rua Padre Feijó, Canela.
Além de Koellreuter, seus grandes amigos na Emus eram Lindembergue Cardoso, Milton Gomes, Paulo Costa Lima e o compatriota Ernst Widmer, um dos fundadores da escola e que, compreendendo o desencanto de Smetak com a música erudita, abriu espaço para que ele ensinasse musicalidades alternativas.
Os mais de 100 instrumentos criados pelo violoncelista suíço, à base de cabaças, cordas e tubos de PVC, levavam em conta a sua nova estética mística.
Smetak acreditava que a sua missão no mundo ia muito além de executar notas musicais e queria convencer os seus amigos da importância da espiritualidade. Uma conversa específica ilustra como, nas palavras de Tuzé de Abreu, o maestro oscilava entre a ranzinzince e o lúdico. Em um encontro entre os dois e Gereba, Smetak deu uma bronca desabrida nos pupilos que  não se interessavam pela espiritualidade para, logo em seguida, amenizar a sua fala. “Vocês só querem saber de tocar musica para namorar as meninas!…mas tocam bonitinho”, lembra Tuzé.

Os instrumentos criados pelo suíço se tornaram uma fonte de interesse para Caetano Veloso que sugeriu que Smetak fosse a base dos Doces Bárbaros, grupo que reunia também Maria Bethânia, Gal Costa e Gilberto Gil, que se tornaria padrinho de um dos filhos do maestro e cunharia um dos seus apelidos: Tak Tak, onomatopeia que remetia ao relógio, produto diretamente associado ao país de Smetak Mas na década de 1970 ele já estava decidido a não buscar a fama e recusou o convite.
Gilberto Gil foi uma presença constante na vida de Smetak até o final e bancou todo o tratamento do amigo no IBIT. Não se tem notícia de que Smetak tenha voltado à vida, de alguma forma, mas o seu legado continua presente. Como uma maneira de atestar isso, familiares e amigos de Smetak vão se reunir para ler seus poemas e textos no Solar do Ferrão, Pelourinho, onde estão abrigados os seus instrumentos

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