América César fala sobre seu livro Lições de Abril

imagesA professora é autora do livro Lições de Abril. Na entrevista, aborda assuntos relativos à condição indígena atualmente.

 

 

 

 

 

 
por Ítalo Cerqueira

América Lúcia Silva Cesar é graduada em Letras Vernáculas com Estrangeira/Licenciatura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e adquiriu seu mestrado em Letras e Linguística na mesma instituição. Seu doutorado foi dedicado ao estudo de Linguística Aplicada, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, exerce a função de professora na Universidade Federal da Bahia, além de participar do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística e no Programa Multidisciplinar de Pós-Graducação em Estudos Étnicos e Africanos (Pós-Afro).
A professora concedeu uma entrevista para Agenda Arte e Cultura da UFBA, na qual conta como foi a concepção do livro Lições de Abril, além de abordar assuntos relativos à condição indígena contemporânea.
Agenda Arte e Cultura da UFBA: A pesquisa que originou o livro estava voltada à escola indígena e às práticas de letramento de professores, contudo, devido ao contexto da época, o foco teve que ser redirecionado. Na sua avaliação, quais foram os benefícios que agregaram à sua pesquisa nesta mudança de perspectiva?
América César: Essa pergunta me faz lembrar de dois queridos professores: Nelson Rossi,  precursor da pesquisa que resultou no acervo significativo que temos hoje sobre a chamada língua portuguesa no Brasil; e o Pedro Agostinho da Silva, um grande estudioso, a quem devemos muito do que sabemos sobre os índios no Nordeste. O professor Nelson Rossi uma vez disse – e eu nunca esqueci – “o trabalho científico é uma aventura”. Se vamos para o campo certo do que vamos encontrar e fazer, para que pesquisar? E o professor Pedro Agostinho, em momento e circunstância distinta, complementou: trabalhar com índios é antes de tudo um compromisso político. Acho que essas duas falas reverberaram na decisão de mudar (aparentemente) o foco do trabalho. Acredito mesmo que o bom da pesquisa, principalmente a etnográfica, é deixar ela se fazer. E se estamos sintonizados com as causas dos nossos colaboradores de pesquisa, o resultado, creio, deve ser benéfico. O que também não significa uma garantia de antemão. De todo modo, como último recurso, resta a crítica honesta e a reflexão que proporciona a própria experiência etnográfica. Para mim, uma das mais significativas lições que este trabalho trouxe e explicito isso num dos capítulos do livro,  foi compreender o quanto a pedagogia politicamente implicada é um complexo que ultrapassa os muros concretos da escola e se faz na vida dos seus sujeitos. Ainda mais se tomamos o conceito de letramento, como conjunto de práticas socioculturais atravessadas pela escrita e entendemos que a escola indígena, como escola comunitária, específica e diferenciada, está visceralmente implicada com a vida e a história, em todos os sentidos, da sua comunidade. A conclusão a que cheguei é que, no fundo, nem saí tanto do foco inicial do trabalho. Apenas observei a escola e a formação do professor de um outro ponto de vista.
Agenda: Para a elaboração do livro, você teve que conviver com os índios Pataxós durante certo período. Como foi essa experiência?
América: Como disse Clifford Geertz sobre etnografia: “o trabalho de campo é uma experiência completa, difícil é saber o que foi aprendido”. Os pataxós com quem eu tive a felicidade de conviver me deram inúmeras lições. Por isso também o título do livro. Mas foram muito mais do que as seis, que escolhi para analisar e escrever. Dentre as muitas que talvez não tenha falado, arrisco destacar uma aqui: a sua relação com os diferentes – eu e os muitos outros com os quais eles tinham contato nessa época, marcada principalmente pela elegância no trato e bom humor com os limites do outro. Apesar de toda a tensão do momento histórico e das inúmeras pressões que sofremos como envolvidos com os acontecimentos, foi uma experiência prazerosa pela tolerância que tinham com as minhas “gafes” e como sutilmente me mostravam o que deveria fazer.
Agenda: Durante o período de comemorações dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, algumas ações foram desencadeadas em Coroa Vermelha, como a desapropriação de casas, implantação de saneamento básico, construção de escola e museu, instalação de uma grande cruz, além da destruição do Monumento à Resistência dos Povos Indígenas na América Latina. Qual era o sentimento indígena neste período?
América: Esse foi um dos pontos que me chamaram mais a atenção e que foi de certa forma privilegiado nas minhas elucubrações. Primeiro porque não era “um sentimento indígena”, eram muitos os posicionamentos e sentimentos dentro da comunidade indígena de Coroa Vermelha e entre os indígenas que chegaram para a Conferência, ao ponto de haver rachaduras e posições difíceis de concertar. Certamente muito mais complexo do que se noticiava. No entanto, é possível dizer que havia nessa complexidade algo que se manifestou em vários momentos, uma certa construção de identidade pan-étnica, um sentido de pertencimento que juntava entre si “os índios” em oposição aos não-índios, fossem eles quem fossem (aliados ou não).
Agenda: Desde então já se passaram 12 anos. O que mudou neste período na relação governo, sociedade e indígenas? Como você enxerga o que ainda deve ser melhorado?
América: Difícil essa pergunta. Às vezes penso que andamos, rodamos e não saímos do lugar. Se temos por um lado algumas conquistas, como por exemplo uma maior organização do movimento indígena e investimento em recursos e projetos que beneficiam os indígenas de uma maneira geral; por outro,  temos uma diversidade de práticas, em todos os níveis do Estado brasileiro, historicamente perversas e contrárias aos interesses indígenas – e também aos dos não indígenas que enxergam a importância do patrimônio cultural, tecnológico dos povos indígenas para o aperfeiçoamento da sociedade brasileira. Agora mesmo, só para citar alguns exemplos mais recentes, temos a construção de Belo Monte à revelia de todas as manifestações contrárias, a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de Proposta de Emenda Constitucional que tira do Executivo a prerrogativa de demarcar terras indígenas, sem sequer ligar para a opinião dos indígenas, o que mostra claramente como jogam os políticos. E aqui na Bahia a posição do governo, que ao invés de reconhecer a legítima reivindicação pela regularização das terras dos Pataxó Hã-Hã-Hãe e defender medidas imediatas para por fim aos conflitos que vitimam há décadas inúmeros indígenas, não! Coloca como alternativa uma proposta de remanejamento desse povo das terras que tradicionalmente ocupam. Vou ficando por aqui, porque a lista é grande. Basta olhar o mapa dos conflitos ambientais no Brasil. Acredito mesmo é na força e no trabalho de resistência cotidiano dos indígenas, em diversos pontos do Brasil, que se reúnem, discutem, propõem e continuam na luta histórica para garantir o que é seu.

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *