Uma expedição pelo cinema de rua de Salvador

*Por Virgínia Andrade

A expedição começou no Cine Tupy, Aquidabã. O grupo, formado por aproximadamente 20 pessoas, apesar da imprevidência do tempo, se mostrava animado com a ideia de transitar pelo centro histórico da cidade e conhecer antigos cinemas de rua, que, numa época nem tão distante, eram sinônimos de efervescência cultural.

Do Tupy ao Jandaia, no cruzamento da J. J. Seabra com a Rua do Alvo. Do Pax, o “Gigante da Baixa dos Sapateiros”, ao Astor, o “Palácio do Sexo” na Rua da Ajuda. Do Cine Excelsior na Praça da Sé ao Glauber Rocha na Praça Castro Alves. Esse foi o trajeto da Expedição Cinema de Rua, realizada na sexta-feira, 12 de julho.

A proposta de João Pena, urbanista e pesquisador que mediou o passeio, era simples: discutir a relação existente entre os cinemas de rua e o centro de Salvador, percorrendo espaços que foram o espírito de uma época, considerando as marcas que esses locais imprimiram na identidade e no comportamento da cidade ao longo do tempo.

Ao propor o debate sobre o cinema enquanto espaço, não produção cinematográfica, o pesquisador possibilitou ampliar o horizonte de análise das particularidades e dos papéis alternativos desempenhados pelos cinemas populares na cena artística da cidade. Para ilustrar, citou os que além de cinema eram teatro, como o Guarani; os que eram cine arte, como Astor, fechado no início desse ano; e outros que, como o Excelsior – único a exibir pornô homossexual – pertenciam a algum tipo de ordem religiosa.

Foto: MAM / Divulgação

Durante o percurso, Pena destacou a inexistência de projetos que proponham a revitalização dos cinemas de rua da cidade, e alertou para o Plano de reabilitação participativa do centro antigo de Salvador, que propõe, dentre outras medidas, a revitalização da Baixa dos Sapateiros. Nessa perspectiva, apontou o que considera um grande paradoxo: “como revitalizar o que já tem vida?”, inquiriu o urbanista, e completou: ” é preciso voltar o foco e pensar qual é o centro que se deseja”.

Para o publicitário e montador de filme cinematográfico, Filipe Seixas, a expedição foi extremamente válida, além de ser um passo importante na captação de informações para o documentário sobre cinemas de bairro que está produzindo em parceria com outras duas pessoas. “Descobrimos novos personagens da história do cinema de rua em Salvador, colhemos informações surpreendentes e entramos em contato com pessoas que fortalecerão ainda mais nosso projeto”, declara.

Parte da programação educativa que integra a mostra “Tupy Todos os Dias”, em cartaz no Museu de Arte Moderna da Bahia, a expedição foi encerrada, como não poderia deixar de ser, em uma das salas de cinema do Glauber Rocha, em conversa com o diretor e programador do espaço, Cláudio Marques.

Foto: Divulgação MAM
Foto: Divulgação MAM

Tupy Todos os Dias Em cartaz até o dia 30 de agosto, a mostra faz referência às intervenções artísticas de Juarez Paraíso, principalmente ao painel do artista no foyer do Cine Tupy, construído no final da década de 70 e destruído após 3 anos de existência.

História – O Tupy surge no início década de 50, mas assim como grande parte dos cinemas populares que se tornaram pornôs, só começa a exibir os filmes eróticos nos anos 70. Nessa época, a programação do cinema ainda era dividida entre os gêneros comerciais e a pornografia, até a inserção, no final da década, da prática sexual dentro das salas. Hoje, o filme funciona apenas como pano de fundo, afinal o que leva os frequentadores ao espaço é a busca de sexo, seja ele mediado ou não pelo dinheiro.

Em conversa descontraída, João falou sobre a importância dos cinemas de rua, sobre as mudanças pelas quais Salvador passou ao longo do tempo e sobre  o processo de  decadência que assola o centro histórico.

Agenda – João, que o motivou a pesquisar a relação entre os cinemas de rua e as mudanças na dinâmica de Salvador?

João – Primeiramente, eu queria pesquisar a dinâmica da cidade, porque sou urbanista e a temática me interessa muito. Por outro lado, me interessa também pesquisar sobre corpo, prática sexual, sexualidade. Pensei: “como fazer as duas coisas?”. É nesse momento que, a partir de leituras, surge a questão do cinema pornô. O curioso é que na medida em que fui pesquisando, percebi que o cinema pornô não se encerra nele mesmo. Ele parte de alguma coisa, coisa essa que descobri ser o cinema de rua. A partir disso, fui buscar informações sobre o surgimento do cinema e sua chegada aqui em Salvador dois anos depois.

Agenda – De que maneira o cinema popular se insere, inicialmente, na lógica da cidade?

João – Numa perspectiva espacial, enquanto estavam no auge, os cinemas de rua definiam fluxos. Definiam para onde as pessoas iriam no final da tarde, no fim de semana… O público ia ao centro assistir às sessões e saíam de lá à meia-noite, porque havia um sistema de transporte, o bonde, que atendia, ainda que razoavelmente, a população. Além disso, o cinema influencia o modo de vida das pessoas, no sentido de que muita gente leva para o seu cotidiano elementos presentes no cinema. A tentativa de imitar o modo com determinado ator de veste, ou o comportamento de uma atriz específica…enfim, o cinema insere em Salvador ideias, que influenciaram tanto comportamento das pessoas, quanto a configuração da cidade, que passava por uma expansão.

Agenda – Como esse cinema se projeta hoje?

João – Hoje, temos Salvador com quase 3 milhões de habitantes e a maior parte dos cinemas concentrados nos shoppings centers. Enquanto antes os cinemas estavam distribuídos por toda a cidade, hoje estão pontualmente localizados em regiões, que, por conta das insuficiências do transporte e do alto custo, distanciam grande parte da população do cinema, anteriormente, com caráter mais popular.

 Foto: MAM / Divulgação

Agenda – É possível dizer que há intersecção entre a história do cinema de rua e a da capital baiana?

João – Com certeza. A relação entre o cinema e a cidade surge no próprio surgimento do cinema. A cena inicial do primeiro filme exibido, por exemplo, era a de operários saindo de uma fábrica, ou seja, um recorte urbano, cotidiano. E aqui no cinema de Salvador está articulada ao modo como a cidade foi produzida e reproduzida ao longo do tempo. Na época em que o centro detinha o papel de polarizador, os cinemas de rua estavam ali com uma força enorme de integrador social. A partir de 70, a cidade começa a experimentar um outro padrão de ambiência urbana, baseado no redirecionamentos dos fluxos e fixos. Opta-se, então, por investir em outras áreas em detrimento do centro, o que, de várias formas, reverberou no cinemas de rua, embora este não seja o único motivo do enfraquecimento da atividade.

Agenda – O que você acha que levou à transformação dos cinemas de rua tradicionais em cines pornôs? Como você avalia essa transição? Houve algum tipo de impacto?

João – Com o redirecionamento dos investimentos, o centro, acompanhado dos cinemas que funcionavam lá, entrou em processo de degradação. Alguns desses cinemas passaram a exibir filmes pornôs como forma de manterem-se abertos, funcionando. Afinal, sexo é lucrativo. E o grande impacto dessa medida é a mudança no perfil do público frequentador do espaço. Enquanto a mudança gerou rejeição em parte da população frequentadora, outra parte sentiu-se atraída e assumiu o lugar de novo público.

Agenda – O que mais te chamou a atenção durante o seu processo de pesquisa?

João – A minha primeira surpresa foi com a história do cinema e as relações que estabelece com a cidade, principalmente no caso de Salvador. Depois, observar o que acontece nas salas de cinema é muito interessante, porque a forma como as pessoas se comportam é absolutamente natural. O que acontece ali, fica ali. É como ir ao carnaval e beijar dez pessoas. Quem vai está habituado àquilo, faz parte da realidade de cada um, é próprio do cotidiano. Por isso, não há nenhum estranhamento em ver o outro fazendo sexo, por exemplo. Ou o incômodo de um com o outro vendo. Há um nivelamento lá dentro, que é bem interessante analisar.

Foto: Acervo pessoal

João Pena é urbanista, graduado pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador do Nômades – Núcleo de pesquisa em subjetividade e cultura, além de incorporar a equipe técnica da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SEDUR). Um dos eixos do trabalho de pesquisa é o estudo da relação existente entre os cinemas de rua e a cidade de Salvador, com foco nos cinemas pornôs presentes no centro da cidade.

 

 

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