Entrevista: ‘Desigualdades de gênero se acentuaram com a pandemia, mas nunca deixaram de existir’

Por Laisa Gama*

A vida de todos durante a crise sanitária de covid-19 foi impactada de inúmeras formas. Com a necessidade de manter um isolamento social, escolas foram fechadas, empresas adotaram modelos de home office e formas de lazer foram aos poucos sendo restringidas. Mas, principalmente para mulheres, as dificuldades enfrentadas nesse período tomaram outras proporções.

(foto: acervo pessoal)
(foto: acervo pessoal)

Socialmente oprimidas e vistas como as principais responsáveis pelo cuidado com o outro, suas múltiplas jornadas de trabalho com os filhos, estudos e o emprego tiveram que tomar forma, muitas vezes, dentro de um mesmo ambiente. Além dessa questão, preocupações acerca de violências infligidas à elas tornaram-se  pauta com o isolamento social. No primeiro semestre de 2020, houve um aumento de 2% dos casos de feminicídio em relação ao ano anterior, segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Para trazer um panorama a respeito da situação da mulher em suas diversas facetas e em como a pandemia influenciou em suas vidas, a Agenda conversou com a pesquisadora Juliana Márcia Silva Santos. Integrante do Núcleo Interseccional em Estudos da Maternidade (NIEM), Juliana é mestre em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela UFBA, (PPGNEIM/UFBA). Além disso, é colaboradora no Artigo “A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia”, publicado na revista “Feminismos”.

1- Em uma sociedade racista e patriarcal, as dificuldades as quais as mulheres passam são inúmeras, principalmente se forem mãe-solo e trabalhadoras. Em seu artigo “A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na Pandemia”, são citadas algumas medidas possíveis a serem tomadas por empresas no intuito de amenizar o impacto social dessa dupla jornada de trabalho. Porém, as mulheres negras são severamente submetidas a diversas outras situações que mulheres brancas não passam. Quais medidas e políticas públicas podem e devem ser pautadas, levando em consideração esse segmento? 


Quando a gente fala sobre políticas públicas, muitas vezes vemos em um direcionamento de pautar novas políticas. A gente já tem algumas políticas e alguns projetos de lei no Brasil, que podem nos dar melhores condições para mulheres em geral. Mas algumas questões que também precisamos pensar é  sobre a licença paternidade e como o estímulo da participação paterna nesses primeiros dias e semanas após o parto é importante. Principalmente porque a maioria enfrenta grandes dificuldades no retorno da licença maternidade. Temos um projeto de lei que amplia essa licença para 180 dias e é indispensável que tenhamos o apoio das empresas, reconhecendo a importância da ampliação desse período. Essas questões atingem todas as mulheres.

Pensando em relação às mulheres negras, temos um problema que é muito anterior que atinge as que têm ou não filhos. Elas estão geralmente na base tanto da pirâmide salarial quanto das condições de trabalho das empresas. Assim, estão naquele cargo que recebem menor auxílio remuneração, piores condições de trabalho e estão mais expostas. Às vezes, temos casos de empresas que falam muito sobre inclusão de mulheres negras, mas quando vamos olhar onde é que essas mulheres estão, não são em cargos de decisão. Elas estão no trabalho técnico, na limpeza. Quem está nesses outros lugares geralmente é um homem branco. 

Precisamos olhar para essa pirâmide que existe dentro das empresas, refletir sobre ela, pensar sobre como o racismo estrutura as condições de vida da pirâmide e compreender as diferenças e dificuldades que a maternidade traz.

2 – De acordo com Aquino, citada em seu artigo, as mulheres são a maior parte do corpo acadêmico de estudantes matriculados em Instituições de Ensino Superior desde os anos 2000. Tendo isso em vista, o acesso ao ensino superior foi uma dificuldade comentada em seu artigo, impactando na permanência das mulheres, principalmente as mães nesse espaço. Qual o papel das universidades em garantir que a evasão estudantil seja controlada e como está se dando essa atuação?

Nesse momento da pandemia, as universidades estão enfrentando grandes desafios, pois elas tiveram que se adaptar a esse modelo de EAD abruptamente. Universidades como a UFBA, que tem um número muito grande do corpo discente, docente e de profissionais técnicos, tiveram muitas realidades para gerir. A UFBA, por exemplo, vinha sofrendo com alguns cortes. Para além da pandemia e do número de pessoas, temos uma  dificuldade em relação a recursos. 

Mas existem alternativas dentro dessa mesma realidade que já é difícil. Primeiramente, precisamos pensar que cada público é um público. Cada corpo discente é um corpo discente. Cada lugar modifica a realidade. Então a que nós temos na Bahia não é a mesma no Rio Grande do Sul; A realidade que a UFBA enfrenta não é nem sequer a que a UFRB tem. 

Então, o principal nesse momento, é escutar os grupos estudantis e essas representações que são os coletivos, movimentos importantíssimos dentro das Universidades. No Brasil mesmo, é um fenômeno recente a existência de coletivos de mães estudantes, que atualmente é o que pesquiso no Doutorado. Então, acredito que escutando eles, vamos poder agir de maneira eficiente, tendo em vista que existem essas demandas, há as que vão ser prioritárias a depender público e do espaço. Além disso, pensar dentro dos recursos que estão disponíveis.

3- A sobrecarga feminina pelas múltiplas jornadas já é algo extremamente marcante da sociedade atual. Com a pandemia isso se tornou mais forte ainda com a necessidade de ficar em casa. O que podemos esperar no futuro para essa situação?

Vai depender do que estamos fazendo hoje. Temos medidas sanitárias a cumprir e isso vai definir por quanto tempo vamos permanecer nessa situação. As escolas e creches fechadas trazem novas demandas para dentro do lar e se tratando de crianças, sabemos que elas recaem sobre as mulheres. Além dessas questões, a gente precisa pautar a divisão de tarefas. 

Essa divisão pode amenizar a carga mental e física das mulheres que estão na pandemia dando conta de tudo, mas que já estavam antes. A pandemia só asseverou as questões sociais que já existiam. Nada é novo, pois a concentração das demandas na mão das mulheres, referentes ao lar, à saúde é histórica. O que podemos esperar depende diretamente  do que vamos fazer agora. Temos que repensar o lugar que a mulher ocupa na sociedade.

4 – Como podemos definir a qualidade de vida atribuída às mulheres neste contexto de crise sanitária, na qual muitas vezes são responsabilizadas por atividades que, socialmente, se tornaram um dever somente da mulher? 

Qualidade de vida na pandemia é uma coisa complicada de se falar. Tudo ficou mais difícil agora. Não podemos mais sair pra nos exercitar, para o lazer. Tudo tem de ser feito dentro de casa. A queda da qualidade de vida é existente. Temos registrado um adoecimento  da saúde mental muito grande durante a pandemia. A Organização Panamericana de Saúde já tinha registrado que nós mulheres, somos a maior parte dos profissionais de saúde na linha de frente contra o covid-19. Temos também muitas mulheres negras, muitas como técnicas de enfermagem, profissionais de limpeza nos hospitais na linha de frente, lutando também contra o coronavírus.

Além dessa questão do profissional, também temos cuidado dos nossos entes, da nossa família. Existe um número muito grande de mulheres que passaram a cuidar de alguém na pandemia. E, sabemos, quando adoece um familiar, somos nós as convocadas para serem acompanhantes. Então, por assumirmos essas múltiplas jornadas, que muitas vezes são exclusivamente nossas, fazemos parte do grupo em que a saúde mental está em maior risco. A Organização Panamericana de Saúde menciona que o grupo de mulheres que fazem os seus malabarismos para darem conta das múltiplas jornadas, estão com a sua saúde mental pior. 

5 –  Qual a relação que podemos fazer com a classe social da mulher e o ritmo da sobrecarga imposto a ela?

As situações de opressões que as mulheres passam vão ser alteradas e ter nuances diferentes de acordo com alguns fatores. Têm preconceitos que mulheres brancas não sofrem. As negras sofrem com uma hipersexualização, não somente por ser mulher, mas também pela sua raça. Então, vamos ter fatores como raça, classe e geração a qual fazem parte, modificando trajetórias. Mas todas as mulheres serão diretamente atravessadas pelo machismo e sexismo por conta do gênero. 

As mulheres sempre foram percebidas como uma figura exclusiva do lar e da família, como se suas trajetórias, seus desejos e sonhos tivessem que estar restritos à essa esfera doméstica. Então, os direitos conquistados ao longo da história, como ao estudo, trabalho, ao ensino superior, não resultaram na divisão de tarefas que elas já haviam antes, mas sim, na soma. Ou seja, foram jornadas sobrepostas. As que já cuidavam do lar, passaram a estudar e trabalhar, fazendo tudo sozinhas muitas vezes. E até quando dividem as tarefas é com outra mulher, que é algo extremamente interessante, porque quando falamos em quem é a figura que contratamos para dividir as tarefas domésticas é outra mulher, sendo geralmente no Brasil, negras. 

A não divisão de tarefas é o que gera essa sobrecarga feminina, e uma sensação de culpa quando  não conseguimos dar conta de tudo isso gerando também uma carga mental. A gente vai pro trabalho, vai para a faculdade e ainda continua com a cabeça nas obrigações de casa.  

6 – Se em 2019 o número de casos de violência doméstica teve um aumento de 10% em relação ao ano anterior, com a pandemia esses números se mostraram ainda mais expressivos. De que forma pode-se avaliar a atual situação da mulher que não trabalha e ainda vive essa situação de perigo?

A violência doméstica é um problema antigo no nosso país. Ela vem desse sistema patriarcal, dessa cultura de violência e posse da mulher. Antigamente, nós tínhamos leis que garantiam o direito do marido sobre a esposa, como se ela fosse somente sua posse.  Isso é um problema cultural. Por outro lado, na pandemia, que como falei antes evidencia questões que já vivíamos, temos mulheres que vivem na dependência financeira do companheiro que às vezes, não conseguem sair de casa por conta dessa situação. Temos um fator diretamente ligado a um modelo de maternidade, porque muitas mulheres permanecem nessa situação porque querem ver aquela família: pai, mãe e filhos.  Acham que por ela ter um filho com aquela figura, não podem sair de casa, mesmo que seja maltratada ou então que ele maltrate seu filho. Se entende que essa figura do pai, precisa ser mantida, respeitada, sempre pensando em manter essa família tradicional. Até porque, a sociedade condena mulheres separadas

E então, chega a pandemia e impõe o isolamento social, deixando a vítima ainda mais refém, porque ela passa mais tempo dentro de casa junto desse agressor. Agora, para aquelas que não coabitam com seus agressores, e estão isoladas em suas residências, eles sabem onde moram e assim vão  agredi-las.  

Tivemos alguns dados colhidos no ano de 2020, apontando um maior consumo de álcool durante a pandemia. Isso poderia ser uma influência direta sob a violência doméstica, já que, muitas vezes, quando cometem as violências os agressores estão sob efeito de grandes quantidades de álcool e às vezes drogas. Então, essa  é uma realidade que já existia. Tivemos até uma queda dos registros de violência doméstica em relação aos anos anteriores. Mas também tivemos um aumento no pedido para medidas protetivas, justamente pelo fato delas estarem ficando em casa e por serem mais facilmente localizadas.

*voluntária da Agenda Arte e Cultura

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