Dá para saber como será o mundo? Historiadora faz paralelos entre cenários pós-gripe espanhola e pós-covid19

“O medo da doença, ainda presente, abriu alas à efusividade e ao prazer catártico”, diz Laura Oliveira

Por Luana Lisboa*

Das artes à economia, todos os setores têm se adaptado à realidade do mundo em pandemia. Junto a isso, a ansiedade é um dos sentimentos que mais tem crescido dentre as pessoas. A pandemia fez dobrar casos de ansiedade e estresse, segundo levantamento do início de maio publicado pela revista científica inglesa The Lancet. Uma das razões disso é que o nosso sistema natural de defesa perde a capacidade de prever o futuro próximo. Mas, pelo menos em alguns cenários, prever o futuro é possível, a partir da busca pelo entendimento do passado.

Professora Laura de Oliveira
Professora Laura de Oliveira

Então, para buscarmos entender o cenário cultural no mundo pós-pandemia, a Agenda conversou com Laura Oliveira, professora do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da UFBA. Laura é especialista em História Contemporânea e nos contou um pouco sobre o cenário que vigorou após a última pandemia que afligiu o mundo, em 1918: a gripe espanhola. Fazendo conexão com a atualidade, ela fala desde artes e sociabilidade até política.

Agenda: O cenário do mundo após a gripe espanhola foi também o período pós I Guerra Mundial. Que cenário era esse?
De modo geral, as guerras criam condições favoráveis para epidemias e pandemias. Elas provocam o aumento da circulação de pessoas pelo mundo, especialmente dos contingentes militares, mas também da população civil. Fragilizam os corpos, na medida em que os expõem à violência do front, no caso dos soldados, e potencializam o contágio, pois confinam grandes grupos humanos em espaços pequenos e sem condições sanitárias adequadas. Entre os civis, a carestia e a fome, se não influenciam diretamente o contágio, definem os índices de mortalidade. Junto com o acesso limitado ao cuidado médico e farmacêutico – e com a ineficácia ou eficácia parcial das medidas terapêuticas conhecidas –, esses fatores tornam o impacto das doenças muito maior, e os pobres especialmente mais vulneráveis a ela.

Durante a Primeira Guerra Mundial, manifestou-se pela primeira vez na história o vírus Influenza. O nome popular, “gripe espanhola”, deve-se ao fato de que a Espanha, vivendo sob um regime democrático, noticiou mais o acontecimento, enquanto em outros países, sobretudo naqueles que formavam as tríplices envolvidas na guerra, o silêncio imperava. A hipótese mais aceita é a de que ele tenha sido levado à Europa por soldados que haviam estado concentrados em acampamentos militares no estado do Kansas, nos Estados Unidos. Embora a Primeira Guerra tenha sido, sobretudo, uma guerra de trincheiras, a contaminação mais ampla da sociedade era uma questão de tempo, não apenas pelo retorno dos soldados sobreviventes, sadios ou enfermos, aos seus locais de origem, mas pela implicação direta ou indireta da população civil na situação de guerra e pela alta transmissibilidade do vírus.

As mudanças geopolíticas ocorridas no continente após o fim da guerra, notadamente a dissolução de antigos impérios (otomano, russo, austro-húngaro), provocaram o surgimento de novos Estados Nacionais e impuseram nacionalidades correspondentes a certos grupos étnicos, em detrimento dos demais, lançando uma legião de europeus à condição de apátridas e/ou refugiados. No “não-lugar” da ausência de identidade civil, muitas vezes encarnada nos campos de refugiados, milhões de pessoas tornavam-se ao mesmo tempo inexistentes para os Estados europeus – e, portanto, para os seus sistemas de saúde – e mais suscetíveis ao contágio. Todas essas situações garantiram que a conhecida “gripe espanhola” se proliferasse rapidamente pelo continente, mas não somente por ele, deixando um saldo de milhões de mortos em todo o mundo. Estima-se que um quarto da população mundial tenha sido contaminada à época (algo em torno de 500 milhões de pessoas) e o número de mortos, embora impreciso, é estimado entre 20 e 100 milhões de pessoas.

Mapas comparativos – A Europa antes e depois da Primeira Guerra Mundial (Fonte: National Air and Space Museum. Smithsonian Institution. Washington, D.C.)
Mapas comparativos – A Europa antes e depois da Primeira Guerra Mundial (Fonte: National Air and Space Museum. Smithsonian Institution. Washington, D.C.)
Mapas comparativos – O Oriente Médio antes e depois da Primeira Guerra Mundial (Fonte: National Air and Space Museum. Smithsonian Institution. Washington, D.C.)
Mapas comparativos – O Oriente Médio antes e depois da Primeira Guerra Mundial (Fonte: National Air and Space Museum. Smithsonian Institution. Washington, D.C.)

Agenda: O quanto pode-se dizer que a pandemia do século passado teve de impacto em termos culturais no Brasil e no mundo?

Durante a pandemia do século passado, foram produzidas inúmeras representações sobre a doença, que expressaram diferentes formas de percepção sobre a situação de guerra. Em cada lugar, elas adquiriram uma face diferente, indicando a responsabilização de determinados grupos nacionais, étnicos ou políticos pela moléstia. O nome “gripe espanhola”, por exemplo, embora tenha sido cristalizado ao longo do tempo, não era, à época, uma unanimidade. No Senegal, referia-se a ela como “gripe brasileira”, em virtude dos soldados do Brasil que haviam atuado na cidade de Dacar, capital do país, durante a guerra. Na Polônia, sintetizando o espírito anticomunista e o medo da revolução ao leste, a doença ficou conhecida como “gripe bolchevique”. A gripe espanhola não instaurou o preconceito, mas serviu para estabelecer os contornos de uma estética do medo, que personificou no outro – já conhecido e objeto de desprezo, aversão ou terror – a própria ideia de mal.

No Brasil, boa parte das representações sobre a gripe expressaram o imaginário da guerra. Muito se conjecturou se a doença não havia sido produzida como arma biológica, notadamente pelos alemães, demonstrando a tônica de apoio à Tríplice Entente (composta por França, Inglaterra, Império Russo e, mais tarde, Estados Unidos). A doença teria sido engarrafada pelos alemães e distribuída por submarinos ao redor do mundo.

Charge do jornal A Careta, de 1918, mostrando um submarino alemão portando o vírus Influenza
Charge do jornal A Careta, de 1918, mostrando um submarino alemão portando o vírus Influenza

Passado o ápice da pandemia, as manifestações culturais sobre a gripe adquiriram um caráter híbrido: o medo da doença, ainda presente, abriu alas à efusividade e ao prazer catártico. O primeiro carnaval posterior à pandemia, em 1919, no Rio de Janeiro, foi memorável: marchinhas, blocos e convites para bailes de carnaval faziam referência ao tema. O bloco Democráticos, por exemplo, entoava os versos:

Assim é que é! Viva a folia!
Viva Momo – Viva a Troça!
Não há tristeza que possa
Suportar tanta alegria.
Quem não morreu da Espanhola,
Quem dela pode escapar
Não dá mais tratos à bola
Toca a rir, Toca a brincar…
Música de carnaval cantada nos Democráticos,
promovendo um baile no dia 11 de janeiro de 1919.

A pandemia também teve impacto sobre a cultura alimentar. As muitas especulações acerca da causa da doença – somadas aos limites do conhecimento científico – levaram a prescrições inusitadas aos doentes. Por um lado, já se reconhecia a importância do isolamento social como melhor forma de evitar o contágio, embora a relação entre os vírus e as doenças só viesse a ser comprovada mais tarde, nos anos 1930. Por outro lado, tal recomendação aparecia junto a outras, mais exóticas, tais como a ingestão de sal de quinino e gargarejos à base de tanino e folhas de goiabeira (fig. 4).

 

Recomendações da Inspetoria de Higiene à população, durante a “gripe espanhola” (1919)
Recomendações da Inspetoria de Higiene à população, durante a “gripe espanhola” (1919)

Além disso, outros produtos, como caldo de galinha, ovos e limão, foram tidos como eficazes no combate à doença, sendo objetos de especulação comercial. Há conjecturas, inclusive, sobre a origem da caipirinha estar associada à pandemia, devido aos supostos poderes curativos da combinação entre cachaça e limão.

Distribuição de caldo durante a “gripe espanhola”. Rio de Janeiro, 1919
Distribuição de caldo durante a “gripe espanhola”. Rio de Janeiro, 1919

Fora do Brasil, as sensibilidades artísticas também foram afetadas pela pandemia. Edvard Munch, o pintor norueguês, convalescendo da gripe, pintou em 1919 um “Autorretrato” em que aparece de robe, prostrado em uma cadeira, moribundo.

“Autorretrato”, de Edvard Munch (1919)
“Autorretrato”, de Edvard Munch (1919)

O pintor austríaco Egon Schiele pintou “A Família”, um quadro que mostra ele e a esposa, Edith, com uma criança entre as pernas, ambos nus, talvez em uma cena de parto. Estavam na ocasião contaminados pela gripe; ela, grávida de seis meses. Dias depois da pintura do quadro, eles faleceram.

“A família”, de Egon Schiele (1918)
“A família”, de Egon Schiele (1918)

Agenda: A gripe espanhola chegou no Brasil em setembro de 1918. À época, o Diretor Geral da Saúde Pública, Carlos Seidl, não foi a favor de isolamentos e até pediu a censura dos jornais, que estariam causando pânico à população. Você pode falar um pouco sobre essa semelhança com a atualidade? Por que você acredita que ela acontece?

Conforme foi dito, o nome “gripe espanhola” tem a ver com o silêncio das nações europeias a respeito da doença e a liberdade de imprensa vigente na Espanha. O surto, que começou em Madri, foi amplamente noticiado no país. Paralelamente, sobretudo nos países que estavam diretamente envolvidos no esforço de guerra, preferiu-se calar a respeito da doença ou subestimar a sua gravidade e proporção, não apenas como forma de conter o mal-estar social e a crítica interna à guerra, mas de não expor as limitadas capacidades dos governos em oferecer serviços de saúde e assistência social, inclusive assistência funerária, à população. Na esteira disso, houve um esforço das autoridades políticas em descredibilizar a imprensa, na hipótese mais branda, ou censurá-la, na mais severa.

Charge da revista Fon-Fon (1918)
Charge da revista Fon-Fon (1918)

A doença chegou ao Brasil primeiro em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, em 1918, através do navio britânico Demerara, que fazia um serviço semelhante aos correios. No Rio de Janeiro, então com mais de 1 milhão de habitantes, foram cerca de 700 mil contaminados e 15 mil das 35 mil pessoas que morreram no país, entre elas, o presidente reeleito Rodrigues Alves. Embora tenha havido um esforço “nacional” de controle e combate da doença, encarnado no médico sanitarista Carlos Chagas, cada um dos governadores (ou presidentes de estado, como eram chamados) tinha autonomia para tomar providencias locais. A força desse federalismo traduz os limites para o exercício do poder central naquele momento.

Somam-se a isso as incompatibilidades entre a quarentena e o isolamento social e as exigências de uma sociedade moderna, urbanizada e industrializada, tal como a vislumbrada pelo governo federal brasileiro naquele momento. Essa aspiração exigia urgência na inserção da população no mundo do trabalho e na circulação de mercadorias. O poder público considerava, ainda – ou assim argumentava, pelo menos – que a quarentena representava uma restrição às liberdades civis, algo incompatível com a sociedade liberal que se tentava construir.

Aos 10 de outubro de 1918, logo após a identificação da gripe espanhola no Brasil, o Diretor Geral da Saúde Pública, Carlos Seidl, em sessão da Academia Nacional de Medicina, afirmou que “em sua marcha caprichosa e vagabunda, a influenza (…) menospreza todos os regulamentos, todas as medidas e todas as quarentenas, sendo o isolamento irrealizável na gripe epidêmica, a menos que se interrompam (…) todas as relações sociais e todos os contatos daí oriundos.” A fala de Seidl demonstra compromisso com a ideia de modernização em curso e o modo como não apenas a doença, mas as estratégias de contenção que então se apresentavam, eram vistas como atravancadoras da dinâmica social e econômica que se pretendia manter.

Não apenas Seidl, mas outras autoridades políticas, médicas e sanitárias esforçaram-se por negar ou minimizar a doença. Conforme o número de óbitos foi avançando, utilizou-se o argumento de que outras patologias já conhecidas, como malária, febre amarela, varíola e tuberculose, matavam mais do que ela. Além disso, havia o problema da subnotificação, pois muitas pessoas que contraíam o vírus não chegavam às instituições de saúde e, portanto, não entravam na contabilidade de infectados e mortos.

Em Salvador, o quadro político, econômico e social anterior à crise já não era dos mais favoráveis. Havia disputas entre diversos grupos no interior do partido Partido Republicano Democrata, uma crise financeira decorrente das restrições às importações e exportações impostas pela guerra, greves e uma situação de extrema pobreza. Relatórios da Diretoria Geral de Saúde Pública produzidos no período denunciavam o excesso de trabalho, a má remuneração e a insalubridade das moradias da população mais pobre, que a tornava suscetível a doenças, especialmente em uma cidade onde as condições de saneamento básico eram deploráveis.

Toda essa situação demonstra que a postura de Seidl expressava um dilema mais amplo das elites políticas e econômicas brasileiras, que, por vezes, ocupavam também postos de autoridades sanitárias: por um lado, a tarefa de ocultar o real desconhecimento sobre a doença e a incapacidade técnica do governo de gerir a situação de crise, especialmente em face dos problemas pré-existentes. Por outro lado, o compromisso com uma ideia de modernização que não poderia comportar um hiato, uma pausa, nas atividades laborais e comerciais. A defesa das liberdades civis, sobretudo a de ir e vir, afigurava-se nesse sentido como uma espécie de chantagem, como se a tônica da imprensa e de parte das autoridades sanitárias, que buscavam encorajar o isolamento, fosse autoritária e descomprometida com o imperativo moderno. Por fim, esses impasses demonstram os compromissos das autoridades com as elites econômicas, que, no caso de Salvador, reivindicavam um “porto limpo” e amplamente aberto às trocas, temendo que a informação acerca da doença comprometesse ainda mais o quadro econômico e impondo aos trabalhadores a continuidade de suas tarefas.

Há várias semelhanças entre a postura de Carlos Seidl e das elites políticas e econômicas brasileiras do período e as atuais. Primeiramente, no que diz respeito ao isolamento social, há hoje uma postura da presidência, ungida por empresários e por parte da cúpula das forças armadas, que questiona a pertinência e a eficácia dessa medida. As autoridades científicas parecem coesas em torno da pauta do isolamento, e as tensões entre a categoria e o executivo federal levaram à demissão e à renúncia em sequência de dois ministros da saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.

O mesmo se verifica na relação entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e os governadores. Embora a república brasileira tenha consolidado, ao longo do século XX, um modelo federalista frágil, oposto ao dos Estados Unidos da América, com excessivos poderes concentrados na esfera federal e limitada autonomia política e jurídica para os estados, a crise do coronavírus tem demonstrado que há limites à obediência ao pacto federativo. Os governadores têm estabelecido balizas próprias para o tratamento da crise sanitária, antecipando-se à presidência, inclusive, na elaboração de decretos. Apesar de estarem, no geral, mais sintonizados ao discurso científico, é preciso ressaltar que nem sempre os governadores têm sido estritos na defesa do isolamento horizontal. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), por exemplo, que foi pioneiro na elaboração de um decreto sobre as condições do isolamento social no estado, definindo as atividades indispensáveis, que seriam mantidas, foi questionado por ter incluído entre elas igrejas e salões de beleza. As primeiras expressam a força do lobby evangélico no estado e, mais amplamente, no Brasil. Tais estabelecimentos não apenas foram mantidos por Bolsonaro no decreto federal, como se somaram a eles academias de ginástica, por exemplo. De todo modo, a pandemia repõe a força dos “presidentes de estado”, muitos deles vinculados a históricas oligarquias locais.

Por fim, a censura moral e econômica aos jornais, praticada pelo governo federal desde que instituído, em 1 de janeiro de 2019, ganhou ainda mais força com a pandemia. Não apenas o presidente Bolsonaro, mas o ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, tem feito críticas sucessivas à imprensa, que estaria criando instabilidade social pelo modo como noticia a crise sanitária. Conforme Ramos, alguns veículos da imprensa (notadamente a Globo e a Folha de São Paulo, ambas alvos de censura econômica do governo) enfatizam o número de mortos e a perspectiva de pane no sistema de saúde, ao invés de apresentarem o número de pessoas curadas do Covid-19 ou de compararem os índices de mortalidade por coronavírus e por outras causas, como câncer, acidentes, etc. Até o dia 19 de maio, com efeito, o número de mortos pelo coronavírus ainda era menor se comparado a outras causas mortis; entretanto, ao atingir a marca de 1179 mortos em um único dia, o vírus se tornou a principal causa de mortalidade no país. De todo modo, o que diferencia as doenças virais, que as elevam à condição de crises sanitárias, é precisamente a velocidade da contaminação e sua capacidade de atingir, com muita rapidez, enormes contingentes humanos. Por isso, não fosse ainda a principal causa mortis no país, o coronavírus deveria ser, assim mesmo, o principal objeto de atenção das autoridades políticas e sanitárias.

Agenda: Como as sociabilidades poderão ser afetadas no mundo pós-pandemia?

A pandemia já está afetando as sociabilidades. Algumas tendências, que já estavam em curso, estão se consolidando, tais como a crise no varejo físico e o fortalecimento do e-commerce, que confirmam novos hábitos de consumo, sobretudo entre as classes médias. Os bares e restaurantes, se não vão sucumbir à crise – posto que se inscrevam em uma tradição de espaços de consumo, alimentação e sociabilidade que remete às tabernas –, deverão coexistir progressivamente com os serviços de entrega de alimentos prontos. Em todos esses casos, uma figura emerge como remanescente no espaço público: o entregador. Ele é, por isso mesmo, o trabalhador mais vulnerável, carente de direitos trabalhistas, de proteção social, e especialmente mais vulnerável à contaminação em situações de crises sanitárias.

Curiosamente, no Recife, durante a “gripe espanhola”, quando as cartas eram a forma mais utilizada de comunicação, muitos carteiros foram acometidos pela doença. Em virtude disso, a administração dos correios não parou os trabalhos, mas as coletas em caixas urbanas foram interrompidas e o horário de funcionamento das agências ficou mais restrito. O próprio navio inglês Demerara, que teria sido o responsável pela chegada do vírus no Brasil, tinha como função o transporte de cargas e correspondências.

O trabalho remoto, também entre os profissionais liberais, que compõem as classes médias, demonstra o declínio de um espaço de trabalho tipicamente moderno, o escritório. Não vejo, por outro lado, o home schooling como tendência, especialmente na educação básica: ele é contraproducente, divide a atenção dos pais entre o trabalho e o acompanhamento das atividades escolares e não tem a mesma eficácia pedagógica. As escolas privadas saem fortalecidas desse processo, mais necessárias, já que se reafirmam como um alto e justificado investimento para as famílias de classe média. A escola continua sendo o locus de formação para as profissões liberais e para a vida civil, e as sociedades não parecem dispostas a abrir mão disso.

No campo amoroso, o coronavírus precipitou algumas uniões, mas também acelerou separações. A pandemia aumentou a busca por sites de relacionamento na internet. Por enquanto, o movimento das plataformas tende a reforçar o imperativo do isolamento, haja vista a liberação do aplicativo Tinder para contatos internacionais, por exemplo. A regra anterior reforçava a proposta de que os encontros virtuais reverberassem em encontros físicos. Agora, o Tinder parece reconhecer que a vida virtual deve ficar mais interessante e atrativa – e se resumir a ela – pelo menos durante algum tempo.

A tomar o carnaval do Rio de 1919 por referência, o pós-pandemia será não um período de retração afetiva e sexual, mas, ao contrário, de muitos e efusivos encontros.

Agenda: A partir disso, é possível imaginar um cenário cultural a curto e longo prazo após a Covid-19?

Há duas dimensões da produção e circulação artística e cultural que merecem ser consideradas sempre – e também no caso do mundo pós Covid-19: os suportes e o conteúdo – que, a rigor, são esferas mutuamente constitutivas. Do ponto de vista dos suportes, o absoluto sucesso das lives indica uma tendência que poderá se consolidar no mercado do entretenimento. Com custo muito mais baixo que o das apresentações físicas e possibilidade de alcance maior, elas têm sido uma aposta certeira dos patrocinadores. A live reforça uma tendência, amplamente em voga desde os anos 1990, quando surgiram as primeiras redes sociais, de acesso do público à vida privada dos artistas.

Desde o início da quarentena, o interesse na palavra ‘live‘ aumentou 4.900% no Brasil. O crescimento consolidou o Youtube como principal plataforma de acesso a vídeos na internet, sendo preferida pelos artistas e empresários em virtude da monetização do acesso – o que não acontece, por exemplo, no Instagram. Apesar do sucesso das lives, alguns shows, que claramente envolviam equipes de produção trabalhando nos bastidores, foram criticados por não seguir a recomendação da OMS de manter o isolamento social.

De todo modo, as lives mostraram, até agora, o poder de assegurar os rendimentos dos artistas mais famosos, mas não os dos artistas menos conhecidos ou dos profissionais envolvidos na produção. E, por enquanto, restringem-se mais à música que a outras linguagens – alguns museus, por exemplo, disponibilizaram passeios virtuais, mas a resposta rápida na situação de crise só foi possível para aqueles que já tinham em suas estratégias expográficas recursos virtuais e plataformas interativas. Várias lives de cantores contiveram apelos a causas sociais, solicitando apoio para combate ao coronavírus e proteção aos trabalhadores da indústria cultural impedidos de trabalhar pela pandemia. O cenário expõe a necessidade de amparo governamental a esses trabalhadores e o desafio de pensar formas de produção virtual que envolvam esses profissionais, preferencialmente, operando de forma remota.

Do ponto de vista temático, pode ser que uma estética da catástrofe apareça nas artes plásticas, como em Munch e Schieler no início do século. Por enquanto, a arte de rua tem dado a resposta mais rápida à situação de crise, e os grafites e as performances em janelas e varandas estão ocupando as grandes cidades, cujas ruas estão cada vez mais esvaziadas de pessoas.

Mural faz homenagem a equipes médicas em tempos de pandemia de coronavírus em Varsóvia, na Polônia
Mural faz homenagem a equipes médicas em tempos de pandemia de coronavírus em Varsóvia, na Polônia (Adam Stepien/Agencja Gazeta via Reuters)

Os memes, como nova e poderosa forma de expressão, afiguram-se como resposta ainda mais rápida, e circulam pela internet aproximando riso e medo, quando nunca as pessoas estiveram tão conectadas. Em um deles, é reproduzida uma cena do thriller O Iluminado, de Stanley Kubrick, em que um homem, interpretado por Jack Nicholson, vai com a família para um hotel distante no Colorado para trabalhar como caseiro. O isolamento causa transtornos mentais ao homem e coloca em risco sua própria família. À frente da imagem, lê-se: “Duas semanas de isolamento com a família? O que pode dar errado?”

Meme coronavírus O iluminado
Meme coronavírus O iluminado

Selecionada para o projeto “Arte em Tempo de Coronavírus”, a obra do artista plástico baiano Gerson Lima apresenta um globo terrestre, com ênfase nas Américas cobertas por máscaras coloridas. Chamam a atenção na pintura os anjos brancos carregando cruzes negras, como referência aos milhares de mortos pela doença. Conforme Oscar D’Ambrosio, doutor em Educação, Arte e História pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e coordenador do projeto, “Eles [os anjos] estão rodeando todo o planeta em uma presença triste, mas colocada de uma maneira sutil, com um respeito que entristece e emociona dentro da percepção visual de que é possível fazer uma denúncia e levar conforto ao mesmo tempo.”

Arte em Tempo de Coronavírus – Gerson Lima (2020)
Arte em Tempo de Coronavírus – Gerson Lima (2020)

Recentemente, também sob impacto da crise, o compositor Chico César lançou pelas redes sociais a música “Se essa praga morresse”, em que questiona: “Será que é mau desejar o mal ao mal?”Na composição, César enfatiza o mal-estar provocado pelo isolamento e a expectativa do encontro amoroso após o fim da quarentena: “Eu só queria que você me abraçasse/ Me convidasse pra ir numa delicatessen/ Uma padaria talvez fosse mais fácil/ Pra rirmos muito até doer o osso/ Da fantasia de não soltar a mão.” Questiona, utilizando a antítese luz-escuridão, se a pandemia não levará as sociedades humanas à revisão das práticas sociais, sobretudo do trabalho excessivo: “Será será que aqui permanecerá/ Hora extra e serão?”; e se, no embate entre a ciência e a religião, a luz, velha metáfora moderna que alude ao conhecimento, sairá vitoriosa: “Sei não, sei não, sei não.”

Se essa praga morresse (Chico César)

Eu só queria que essa praga morresse / Que esse vírus infitete sumisse / Que acabasse logo o disse-me-disse / Que alguém gritasse que isso tudo findou-se / E alumiasse essa escuridão / Eu só queria que você me abraçasse / Me convidasse pra ir numa delicatessen / Uma padaria talvez fosse mais fácil / Pra rirmos muito até doer o osso / Da fantasia de não soltar a mão / Será que é mau desejar o mal ao mal / Pra haver evolução? / Será que o tal do tão propagado caos / Vai causar iluminação? / Será será que aqui permanecerá / Hora extra e serão? / Será que o ser que do escuro sairá / É ciência ou religião? / (Sei não, sei não, sei não) / Se o infinito escutasse minha prece / Pagava o preço por mais alto que fosse / Só peço ao céu apenas que se apresse / De uma vez por todas leve logo essa peste / E me desculpe pela postulação / Eu só queria que você não pensasse / Que isso tudo é só esquisitice / Que o afastamento aumentou minha maluquice / De alguma forma do seu jeito me amasse / E me levasse quente no coração

Agenda: Sob essa perspectiva histórica, quais são outros aspectos semelhantes entre a pandemia da gripe espanhola e a da Covid-19 no Brasil e no mundo?  De que forma o estudo da situação passada (gripe espanhola) pode nos ajudar a entender e absorver nossa situação presente e futura? 

É preciso tomar cuidado com as comparações. Cada situação histórica tem suas especificidades, mas há pontos de convergência que permitem aproximações. No caso da “gripe espanhola” e do coronavírus, as semelhanças são, por enquanto, a proporção mundial que a doença atingiu; os limites da ciência e dos sistemas de saúde público e privado (a despeito do significativo aprimoramento que apresentam, se os tomarmos em perspectiva comparada com os do início do século XX) em compreender, oferecer respostas médicas e remédios rapidamente; a hesitação dos governantes; o medo do caos social; as relações entre os governos e as elites econômicas; a descredibilização da imprensa; as teorias conspiratórias envolvendo as disputas geopolíticas internacionais; a expressão artística da pandemia; e a contenção temporária da sexualidade e dos afetos. A situação expressa ainda a especial vulnerabilidade dos trabalhadores. Em suma, em todos esses sentidos, o passado nos ajuda a compreender o presente, a historicizá-lo, a perceber suas contradições, urgências e mazelas, mas também sua transitoriedade.

Na outra ponta, o passado nos ajuda a identificar o que de novo pode estar se anunciando. Novas formas de trabalho para as classes médias, com a afirmação do trabalho remoto; novas formas de consumo, com o crescente declínio do varejo físico e o crescimento vertiginoso do e-commerce, que impõe novos desafios no campo de transportes, logística, tributação e trabalho; a redução ainda maior dos postos formais de trabalho para profissionais de baixa escolaridade e menor faixa salarial; a ampliação do precariado, sobretudo em virtude da consolidação dos serviços de entrega rápida; o fortalecimento das plataformas virtuais, sejam elas de trabalho ou educação, relacionamento ou entretenimento.

*Fontes usadas:

Figura 3: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 4: http://artecult.com/a-importancia-da-quarentena-na-gripe-espanhola/. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 5:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000100008. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 6: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Edvard_Munch_-_Self-Portrait_with_the_Spanish_Flu_(1919).jpg. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 7: https://pt.wahooart.com/A55A04/W.nsf/O/BRUE-6WHKN6. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 8: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006. Acesso em: 14 mai. 2020.

Figura 9: Disponível em:  https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/19/coronavirus-arte-reflete-impacto-mundial-da-doenca-fotos.ghtml. Acesso em: 14 mai. 2020

Figura 10: https://oglobo.globo.com/sociedade/tamojunto/coronavirus-memes-mostram-lado-do-humor-na-pandemia-24335141. Acesso em: 14 mai. 2020.

[1] GOULART, Adriana da Costa. “Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro”. In: Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006. Acesso: em 14 mai. 2020.

[1] SANTOS, Ricardo Augusto. “O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’. In: Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.13 no.1 Rio de Janeiro Jan./Mar. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000100008. Acesso em: 14 mai. 2020.

[1] GOULART. Op cit.

[1] SOUZA, Christiane Maria Cruz. A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.12 no.1 Rio de Janeiro Jan./Apr. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100005. Acesso em: 14 mai. 2020.

[1] https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/2931/1/arquivo1869_1.pdf. Acesso em: 14 mai. 2020.

[1] https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/04/01/tinder-libera-gratuitamente-funcao-para-conversar-com-pessoas-do-mundo-todo.htm. Acesso em: 14 mai. 2020.

[1] https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/musica/noticia/2020/04/lives-sao-sucesso-de-audiencia-mas-geram-controversia-ck9nc6dih00j7015n81oaj2qy.html. Acesso em: 14 mai. 2020.

5 comentários em “Dá para saber como será o mundo? Historiadora faz paralelos entre cenários pós-gripe espanhola e pós-covid19

  • 8 de junho de 2020 a 18:30
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    Bela revisão e comparação da pandemia de influenza no século passado e o momento mundial atual. Realmente, a história atual parece uma cópia daquela época em muitos sentidos.

    Responder
  • 12 de junho de 2020 a 0:31
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    Excelente texto. Num momento em que o passado tem sido “revisado” para atender aos projetos políticos autoritários do grupo que hoje ocupa os cargos de maior destaque na República brasileira, o trabalho descritivo e analítico das (os) historiadores faz-se fundamental. Reunir fontes, discutir sua produção, as agências, as intenções das personagens daquele contexto histórico, sem dúvidas, é uma operação bastante delicada e acurada. Precisamos, enquanto sociedade, nos aproximar do conhecimento e da produção do conhecimento. Talvez isso, nos ajude a refletir sobre a atual experiência social e política, ao tempo em que nos auxilie a repensar nossas práticas. Acho que esse texto nos permite esse exercício. Muito bom!

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  • 13 de junho de 2020 a 22:18
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    Excelente contextualização e analogia sobre a gripe espanhola e a pandemia da covid-19. De fato, não por mera coincidência, a professora Laura demonstrou que são bastante atuais as discussões, fatos e mentalidade social acerca da pandemia, confirmando assim, as continuidades e rupturas no processo. histórico.

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