A sessão tem que continuar: Financiamento coletivo para pagar dívidas do Circuito Saladearte chega à última semana

Em contagem regressiva, o cinema precisa bater a meta de 300 mil reais até o dia 10 para conseguir reabrir seus quatro espaços.

Maysa Polcri

 

O ano era 2006 e parte da comunidade cinéfila de Salvador, cerca de 300 pessoas, se reuniu para um abraço simbólico ao Clube Bahiano de Tênis, no bairro da Graça. O motivo? A decisão do clube de fechar a primeira sala do Circuito de Cinema Saladearte para dar lugar a uma famosa rede de delicatessen. Os anos passaram e, hoje, o Grupo Saladearte enfrenta mais uma crise. Com as salas fechadas desde março do ano passado devido à pandemia, os sócios correm contra o tempo para arrecadar fundos e quitar débitos na primeira etapa da campanha de financiamento coletivo.

Ainda não há perspectiva de quando os espaços artísticos poderão voltar a funcionar normalmente, mas  o arrefecimento da pandemia da covid-19 em Salvador tem possibilitado que alguns locais voltem a receber público, mesmo que seguindo protocolos sanitários. Porém, para alguns deles, em especial os independentes, a chance de reabertura traz à tona dificuldades enfrentadas pelo setor cultural. Esse é o caso do Circuito Saladearte, que, sem patrocínio, enfrenta problemas, mesmo tendo cortado todas as despesas possíveis ainda em março do ano passado.

 

Vaquinha

Para tentar driblar a crise, o circuito  lançou a campanha de financiamento coletivo Juntos Pela Saladearte*, com o objetivo de conseguir o valor necessário para retomar o funcionamento dos seus quatro espaços: Cinema do Museu, CineMAM, Cinema da UFBA e Cine Paseo. A campanha é dividida em três etapas, a primeira delas com meta de 300 mil reais, destinada ao pagamento de despesas emergenciais, como impostos e aluguel, que deve ser batida até o dia 10 deste mês. Já as outras duas, de 50 mil reais cada, são para manutenção de equipamentos e melhorias. 

Como em 2006, a campanha, que conta com mais de 1.800 benfeitores, tem sido bem recebida pelo público. Para o sócio fundador do circuito, Marcelo Sá, o sucesso é explicado pelo trabalho importante que as salas desempenham no cenário cultural baiano. Afinal, além da exibição de filmes nacionais e internacionais, que não possuem espaço nas grandes redes de cinema,  os espaços eram palco de encontros e saraus. Porém, faltando poucos dias para o encerramento da primeira etapa da campanha, a vaquinha ainda precisa arrecadar cerca de 50 mil reais. 

Um dos fatores que tem movimentado a benfeitoria online são as recompensas que estão disponíveis para quem contribuir. Os brindes vão desde ingressos e cartazes de filmes até obras de artes, fotografias e telas, doadas por artistas plásticos. Até a editora da UFBA, a EDUFBA, doou livros para servirem de recompensas.

Apesar de já ter enfrentado algumas crises ao longo dos seus 21 anos de história, essa é a primeira vez que o Circuito Saladearte pede ajuda financeira diretamente para seu público. Em 2006 e 2015, quando o cinema sofreu com uma queda de bilheteria, a repercussão da mídia acabou sendo suficiente para que as salas continuassem em pleno funcionamento. Mas agora é diferente, com a real chance de não abrir mais as portas, o espaço que sempre abraçou um público diverso, pede socorro.

“Essa crise é diferente primeiramente porque estamos em uma pandemia e todo setor cultural se encontra fragilizado e sem apoio do Governo Federal. Por outro lado, a forma de divulgação é mais rápida e nos aproximamos mais do público”, afirma Marcelo. De fato, a internet tem sido uma grande aliada da campanha. Com mais de 15 mil seguidores no Instagram, o circuito tem publicado vídeos de personalidades baianas como Ivete Sangalo e Lázaro Ramos, falando sobre a importância de se manter vivo o espaço cultural.

 

Medidas 

O circuito chegou a receber apoio da Lei Aldir Blanc de emergência cultural, mas, segundo Marcelo Sá, por ter sido pontual e não retroativa, a lei serviu para o pagamento de somente alguns impostos. Entre as decisões difíceis que o circuito teve que tomar para segurar as pontas ao longo desses meses, uma marcante foi a demissão dos 26 funcionários dos quatro espaços de cinema. Isac Pereira, de 30 anos, foi um deles. 

Durante dois anos e meio, ele trabalhou como projecionista em todas as salas do cinema e, entre uma exibição e outra, acabou se apaixonando pelo Circuito Saladearte. “Não foi apenas um trabalho, foi uma escola cultural. Aprendi muito para a vida,  tive acesso a muito conteúdo e informações”, fala com empolgação o ex-funcionário. Isac conta que um dos filmes mais especiais que assistiu, enquanto cobria a folga de um colega, foi o brasileiro Bacurau. Depois de tanto exibir filmes internacionais, como o premiado Parasita, hoje ele compreende melhor outros idiomas: “A gente vai juntando uma palavra aqui e outra ali e acaba conseguindo entender um pouco mais da língua”.

Antes das demissões, muitas foram as especulações entre os funcionários sobre o que seriam deles com as salas fechadas. Primeiro, o circuito decretou férias coletivas para todos, depois veio o anúncio de desligamento: “Chamaram a gente no Cinema do Museu, e foram conversando com um a um. Todos estavam bem tristes porque era um trabalho muito família, até hoje mantemos contato”. Atualmente, Isac está em Recife trabalhando em uma rede de supermercados, mas não esconde sua esperança de voltar a projetar os filmes de arte em Salvador: “A expectativa é que chamem a gente de novo quando o cinema reabrir”. E ele está de malas prontas para voltar. 

 

Perda

O cartaz mais amplo com a junção de um ambiente acolhedor eram os motivos que levavam a estudante de produção cultural Ana Pinchemel a frequentar as salas do circuito. Quando soube do momento de crise que o cinema enfrenta através do Twitter, a estudante ficou muito desapontada com a chance de Salvador perder um ambiente de efervescência cultural.

“A cidade perde com o fechamento dessas salas na medida em que dá, com o descontrole da pandemia e a crise econômica, um claro desestímulo à cultura, à produção de conteúdo e aos ambientes artísticos em geral. Os soteropolitanos perdem um ambiente consagrado pelo respeito ao audiovisual”, desabafa Ana, que teve a oportunidade de assistir ao clássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de 1968, no CineMAM.

Já a estudante de jornalismo Luana Lisboa, que desde pequena era levada pelo padrasto para assistir os filmes em cartaz, é outra visitante frequente do circuito. “Tenho várias memórias afetivas lá, assisti filmes inéditos que eu não assistiria em nenhum outro cinema. Pessoalmente, não consigo imaginar um cenário cultural em Salvador em que esses lugares estejam fechados”, afirma a estudante que está juntando amigos para realizarem uma doação de 300 reais em grupo, uma opção do site da benfeitoria.

As doações para o circuito podem ser realizadas até o dia 10 de agosto. (Foto: Divulgação)
As doações para o circuito podem ser realizadas até o dia 10 de agosto. (Foto: Divulgação)

 

O Cinema do Museu Geológico da Bahia foi inaugurado em janeiro de 2003 e,, em 2015, chegou a ter seu fechamento anunciado, o que não se concretizou. (Foto: Divulgação)
O Cinema do Museu Geológico da Bahia foi inaugurado em janeiro de 2003 e,, em 2015, chegou a ter seu fechamento anunciado, o que não se concretizou. (Foto: Divulgação)

 

O Cine Paseo, localizado no shopping de mesmo nome, foi inaugurado em setembro de 2009 e é o único que possui duas salas. (Foto: Divulgação)
O Cine Paseo, localizado no shopping de mesmo nome, foi inaugurado em setembro de 2009 e é o único que possui duas salas. (Foto: Divulgação)

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