Poéticas umbilicais

Catarina Reimão

     O arrastar dos chinelos de couro anuncia que ele se aproxima, em passos lentos, de quem já não tem pressa. Pelas ruas do Santo Antônio, no Centro de Salvador, todos o cumprimentam. Juraci Tavares, que desde sua juventude compõe para blocos afros, como o Ilê Aiyê e Malê Debalê, começa a mostrar o rosto por trás dos versos.

     Aos 65 anos, o músico, que também é construtor civil e filósofo, prepara um novo passo na carreira como artista: o lançamento do seu primeiro álbum solo. “Umbilical”, o disco, ganha os palcos e será apresentado nesta sexta-feira (08), às 19h30, em show único no Teatro Sesc-Senac Pelourinho, no Centro Histórico, onde será vendido por R$ 25.

     O trabalho é fruto de sua musicalidade e militância em prol das causas negras e traz um diálogo entre a música e a poesia. Quem assina a direção musical do disco e do show é o baiano Márcio Pereira, mestre em Artes Musicais pela University of New Orleans. Juraci vê “Umbilical” como um parto, um disco que demorou o tempo necessário para nascer. O que fez com que viesse amadurecido poética e musicalmente.

   As experiências da infância, no bairro da Liberdade, despertaram em Juraci a necessidade de interferir na realidade excludente que o cercava. Por volta dos anos 70, começou a frequentar espaços voltados para a preservação da cultura negra, em busca dos valores ancestrais africanos que norteiam suas ações enquanto cidadão e artista.

     “Normalmente, esses valores não são passados nas escolas, deixando-nos apartados desses elementos de afirmação cidadã e autoestima. Essa ocultação permanece em nós negros por um longo período da nossa vida”, explica.

     O artista, que acredita em um ser humano cheio de pluralidades, afirma não ter um ídolo. No entanto, tem diversas referências musicais, como o maestro Moacir Santos, os cantores Milton Nascimento e Gilberto Gil, e ressalta que sua maior fonte de inspiração são os blocos afros. Para ele, são centros de formação e desenvolvimento humano.

    “Em relação aos blocos afros, eu afirmo que são escolas paralelas ao ensino oficial, porque desempenham papéis que a cátedra não faz chegar a nós negros. Valores que colaborariam para as nossas inserções nos variados aspectos da sociedade brasileira”, declara.

     Seja como educador ou poeta, Juraci tem a luta pela inserção da herança histórica como característica marcante de sua trajetória. “Quando escuto a canção “Autoestima”, penso em quantas vezes ouvi a expressão “você é uma negra linda”. Mas só a partir da música dele abri os olhos para a exclusão presente no elogio”, lembra Josiane Acosta, produtora artística do compositor.

O EDUCADOR

     Antes de se dedicar a carreira artística, Juraci lecionou durante 32 anos na antiga Escola Técnica Federal da Bahia, atual Instituto Federal da Bahia (Ifba). “Embora ele fosse professor de um curso técnico, já naquela época tinha o perfil de alguém da área de humanas. Filosofava, nos instigava a pensar diferente e se preocupava com a nossa formação humana”, confessa Maria Clara Oliveira, ex-aluna do curso de edificações.

     O cantor teve como primeira formação a construção civil, em seguida se graduou em filosofia e iniciou o curso de música aos 51 anos. Em 1992, Juraci e sua esposa, Elisabeth Piedade, iniciaram um projeto de aulas de português e matemática dadas gratuitamente por eles, na sala de casa. Depois, ensinaram em espaços cedidos por amigos nos bairros Caminho de Areia, San Martin e Barbalho.

     “Muitas vezes fornecíamos o dinheiro do transporte para os alunos que moravam em bairros mais distantes”, lembra ele. Em 2006, inauguraram o Centro de Humanidades Ossos 21.

     O Centro, que recebeu esse nome por estar localizado na Rua dos Ossos, número 21, é um local inspirador. Reflete, em cada detalhe, seus idealizadores. O corredor de entrada tem, nas paredes, placas em homenagem a poetas negros. Por toda casa é possível encontrar desenhos de pergaminhos com espaços em branco, esperando serem preenchidos com poemas, e quadros inspirados nos textos e músicas de Juraci, presentes da artista Stael Machado.

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Fotos: Catarina Reimão

REINVENÇÃO

     A Escola de Música da Ufba (Emus) representa uma reinvenção de Juraci Tavares. Ele, que ingressou no curso prestes a se aposentar no Ifba, encontrou nesse espaço novos caminhos profissionais e pessoais.

     “A Escola me recebeu com muita amorosidade. Foi nesse ambiente que comecei a descobrir a possibilidade de cantar, me ampliando da esfera da composição”, explica. Entre as conquistas durante o período que esteve na Emus, está a parceria com Márcio Pereira, que produz o artista desde então.

     O produtor musical é o responsável por encorajá-lo a subir ao palco para interpretar uma composição sua, pela primeira vez, em 2007. “Conheci Juraci na Escola de Música, em 2001. Ele, militante declarado das causas do povo negro, viu em mim um aliado forte e atuante – até porque eram poucos os músicos negros na Ufba. Passamos a conversar e Juraci me dava suas poesias para que eu as transformasse em música. Juraci é como meu irmão mais velho”, declara.

UMBILICIAL

     O primeiro disco transita entre a música e a poesia presente em seu livro, “Vocábulos Caminhantes”, para falar da herança africana na Bahia. As canções trazem versos livres e inquietantes que levam o ouvinte à reflexão, acompanhados de melodias leves e dançantes.

     Com músicas como “Comando Doce”, que abre o DVD do Ilê Aiyê, “Bonito de Se Ver”, o álbum foi desenvolvido durante dois anos. Pereira conta que Juraci evidenciou o desejo dele mesmo divulgar as obras produzidas, tanto com o amigo quanto com outros parceiros de criação musical. Por isso, a sugestão do produtor foi que o cantor selecionasse um repertório e montasse um espetáculo. “O “Umbilical” foi diferente de outros trabalhos que realizei porque foi possível criar e formatar  com a liberdade de não se prender a um rótulo comercial”, completa.

     Para Juraci, o nome “Umbilical” remete a um olhar filosófico, plural, rítmico, afro brasileiro. É uma homenagem à África, considerada, por ele, berço da humanidade. Já para o produtor, o disco celebra um lado da cultura afro brasileira, equilibrando ingredientes do erudito e do popular, sagrado e profano, acústico e eletrônico, com uma linguagem multifacetada.

    Juraci, mesmo aposentado, não pensa em pausa nem descanso. O professor, compositor e poeta pretende continuar estudando. “Quero tentar o reingresso para diplomados e iniciar uma graduação em clarinete e, depois, ainda quero fazer um mestrado”. Entre os planos, estão a publicação de mais um livro e uma turnê de divulgação do disco.

SERVIÇO – Show de lançamento de Umbilical, de Juraci Tavares / Sex, 19h30 / Teatro Sesc-Senac Pelourinho / Pelourinho, Centro Histórico /  R$ 20 e R$ 10

Matéria publicada no Jornal A Tarde.
Matéria publicada no Jornal A Tarde.

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