“A aprovação da obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo nacional foi tarde demais para um país como o Brasil”

Por: Ruan Amorim

A construção da sociedade brasileira é centrada em uma grande diversidade cultural. Uma das bases da formação do Brasil é a cultura africana, que é fundamental para compreensão da diversidade étnica do povo brasileiro, suas lutas, crenças e especificidades. Apesar disso, o saber sobre os povos da África sofre com os resquícios do colonialismo e vive sob um processo de apagamento contínuo ou é construído com um olhar estereotipado e ocidentalizado nas terras brasileiras. Foi pensando nisso que o sociólogo africano e mestrando  em ciências sociais na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Besna Mane decidiu criar o curso Introdução à Sociologia Africana, que teve início em setembro, para desmistificar os saberes e quebrar as barreiras do ocidente.  

A convite da Agenda, Besna discute a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo de todas as disciplinas que compõem a educação básica, a  importância da África no contexto de diversidade cultural do Brasil. Além disso, comenta o preconceito desvelado em conteúdos didáticos sobre a história africana e reitera a importância de estudar autores africanos para quebrar os estereótipos construídos no ocidente para com os corpos negros. 

Agenda, Arte e Cultura: Há mais de 18 anos foi aprovada a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo de todas as disciplinas que compõem a educação básica. Essa aprovação, que aconteceu em 2003 (Lei nº 10.639), contribuiu ou contribui com a sua atuação dentro desse campo do saber?

Besna Mane: A aprovação da obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira no currículo nacional foi tarde demais para um país como o Brasil, que teve um processo da criação da sua sociedade com base na cultura africana. Então, foi um processo tardio optar, só em 2003, em anexar história que ajuda o povo a conhecer seu passado histórico no currículo que compõem a base básica de ensino.

Em outro sentido, posso dizer que deu um grande passo comparando com anos atrás. Porém, isso não significa que em todas as escolas de educação básica o que é previsto na Lei nº 10.639 está sendo colocado em prática. Tenho certeza disso, uma vez que depende muito do interesse do professor. Quando, de fato, o conteúdo didático previsto por lei é aplicado nas salas de aula, conseguimos compreender a contribuição dos povos africanos que foram arrancados das suas terras para o território brasileiro. Mas isso só acontece quando conteúdos preconceituosos são deixados de lado, por exemplo, a imagem de um preto acorrentado e apanhando.

Sendo assim, pode ter certeza que a aplicação da história e cultura africana e afro-brasileira contribui muito no campo de saber epistemológico das pessoas, pois a história narra a vivência passada. Essa vivência, por sua vez, é cultural – uma riqueza dentro do processo psicológico e consciente do indivíduo na valorização da sua história.

A.A.C: Dentro do campo do saber, como a sociologia africana se diferencia dos estudos sociais gerais?

BM: A sociologia, em termos gerais, estuda a sociedade, as movimentações e comportamentos sociais, ou seja, nossa vivência social. A sociologia africana também estuda o social da sua natureza e seu objeto na particularidade africana. Referenciando o sociólogo moçambicano Elísio Macamo na definição da Sociologia das sociedades africanas, reitero que a sociologia africana  não pode ser como um estudo essencialista que estuda apenas elementos anteriores a partir de dados ou fundamentos,  mas sim como processo que também analisa transformações sociais no espaço e tempo africano. Então, isso a diferencia de outros estudos sociais, visto que nesse campo tem a possibilidade de estudar realidades e momentos africano.

A.A.C: Como você percebe a aplicação da história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos das universidades  brasileiras que você frequenta ou frequentou? 

BM: Levando em consideração a aplicação dessa disciplina no currículo brasileiro,  a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), onde fiz minha graduação, é uma referência na desconstrução de saberes, sobretudo, no que diz respeito à cultura africana. No processo de ensino da instituição, é possível perceber uma metodologia que ajuda a entender a construção social brasileira e as realidades africanas, isso através de pensadores africanos  e epistemologia ancestral e cultural. Na UFBA e  demais universidades  do Brasil, eu acredito que há espaço para acolher dinâmicas voltadas aos saberes da África no Programa Curricular (PPC) dos cursos de ciências sociais. 

A.A.C: Como funciona o curso de introdução à Sociologia Africana e qual a importância dele para a sociedade brasileira e qual foi a motivação?

BM: A primeira edição do Curso Introdutório à Sociologia Africana iniciou no dia 08/09/2022 com aulas online. O curso é dividido em cinco módulos, que levam os participantes desde os fundamentos do pensamento africano até questões específicas para a sociologia.  Esse não será o único curso que ministrarei sobre o tema. Em breve irei abrir vagas para o próximo. As informações serão anunciadas na página no Instagram @sociologiaafricana. 

O curso  é importante para o fortalecimento do saber africano com sua diáspora. Isso porque através da concepção do estudo da sociologia africana, conseguimos transmitir a epistemologia no seio da diáspora afro descendente no Brasil, isso por meio de um processo histórico intercontinental da escravização do povo africano para sua diáspora. Portanto, a motivação é que meu povo foi um daqueles que veio ao Brasil trazido na colonização e, com a formação acadêmica que recebi no Brasil, criei este projeto para dialogar com os brasileiros. É importante que conheçam a sua história pelo conhecimento africano. 

A.A.C: A sociedade brasileira se desenvolveu através da diversidade cultural, mais precisamente entre os povos nativos e colonizadores. Nesse cenário, qual a importância da cultura africana para entendermos a diversidade étnica do povo brasileiro, assim como suas lutas e crenças?

BM: A sociedade brasileira é formada por três povos, nativos, que são indígenas; africanos, que foram arrancados das suas terras, e europeus, que invadiram o território. Portanto, para a compreensão da formação social brasileira, o sociólogo Gilberto Freyre ajuda a entender este processo, embora defenda a miscigenação partindo do lugar de fala que ele se encontra nesse segmento. Então, para explicar a diversidade cultural na sociedade brasileira, a contribuição do povo africano não pode ser negada ou esquecida. Desse modo, a cultura africana tem importância porque faz parte da construção social e da diversidade étnica do povo brasileiro.  Apesar de ser importante, a cultura africana é negada não só socialmente, mas institucionalmente também no Brasil. Isso é constatado pelo fato de só em 2003 termos conquistado a  obrigatoriedade da história que faz parte da construção da sociedade brasileira na educação escolar. Logo, as lutas se inserem na afirmação da identidade preta pelos movimentos sociais que defendem sua identidade  e crenças. 

[…] para explicar a diversidade cultural na sociedade brasileira, a contribuição do povo africano não pode ser negada ou esquecida.

A.A.C: Em relação a sua atuação dentro da academia (graduação e mestrado), você teve dificuldades em encontrar pesquisadores brasileiros que tivessem como objeto de estudo a sociologia africana, se sim, quais seriam os motivos que impactam na disseminação desse tema por pesquisadores nacionais?

BM: Pelo que vivenciei até aqui, desconheço pesquisadores brasileiros com esse objeto de estudo. Mas conheço um professor pesquisador de um dos países da África que  ministra a disciplina.

A.A.C: Dinamizar o conhecimento da cultura africana que, muitas vezes, é apresentado ao corpo social dentro de uma visão ocidentalizada é combater estereótipos?

BM: Percebe-se que quando se fala do conhecimento, o que vem na mente das pessoas é o conhecimento ocidental, uma vez que eles escreveram que o povo africano teve que passar pelo processo de aculturação, negligenciando as realidades dos conhecimentos culturais tradicionais e ancestrais dessa população. Por isso, no curso eu busco apresentar os desenvolvimentos teóricos da sociologia africana e dos saberes sociais, compreendendo, sobretudo, a sociologia e epistemologia africana, partindo das principais ideias defendidas  por Elísio Macamo sobre a forma reduzida do argumento. Nas quais, ele insiste na particularidade africana e pressupõe uma realidade social fundamentalmente diferente da europeia que exige instrumentos analíticos apropriados. Esta iniciativa apresenta um quadro panorâmico das discussões entre a sociologia/epistemologia e suas áreas afins – antropologia, ciência política e pedagogia social, a respeito de uma série de temas e conceitos fundamentais para o desenvolvimento de conhecimento sociológico africano do período pré-colonial, colonial e contemporaneidade. Isso em prol de combater estereótipos levantados e demonstrar conhecimentos e saberes africano explicados pelo Macamo: Saber tradicional; Saber colonial e Saber africano.

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