“Finalizar o livro sobre a Lina foi a salvação da minha saúde mental durante a pandemia”, conta biógrafo

A Agenda conversou com o carioca Francesco Perrotta-Bosch, autor da mais nova biografia de Lina Bo Bardi, sobre o período em que ela esteve em Salvador

Por Maysa Polcri

Em 1946, a italiana Lina Bo Bardi, fugindo dos traumas da destruição que a Segunda Guerra provocou em sua terra de origem, aportou no Rio de Janeiro. A identificação com o Brasil foi tamanha, que 5 anos depois, estava naturalizada. Responsável por grandes projetos, como o Museu de Arte de São Paulo, Lina deixou marcas profundas no que apelidava de “país inimaginável”. Em Salvador, a arquiteta foi uma das protagonistas do período de grande efervescência cultural das décadas de 50 e 60, conhecido como “Avant-garde”, que teve como principal referência a Universidade Federal da Bahia, sob comando do então reitor Edgard Santos.

A Agenda conversou com o ensaísta e arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, 33, que em maio lançou Lina: Uma biografia, pela editora Todavia. O autor contou sobre o período em que a arquiteta esteve na capital baiana à frente do Museu de Arte Moderna da Bahia, quando este ainda era localizado no foyer do Teatro Castro Alves, até sua saída logo após o golpe militar. Lina só voltaria para Salvador na década de 80, após a redemocratização, quando se envolveu no projeto de restauração do Centro Histórico, patrimônio da UNESCO desde 1985.

Além da diretoria do MAM, a arquiteta consagrada com o Leão de Ouro este ano, foi responsável pela construção do Teatro Gregório de Mattos e pela Casa do Benin. Lina foi uma verdadeira entusiasta da cultura nordestina e pretendia criar um museu de arte popular que estudasse o “pré-artesanato”, modo diferente de produção que encontrou em suas viagens pelo interior baiano. 

Lina Bo Bardi só esteve à frente do MAM restaurado por quatro meses (Foto: Manuel Sá @omanuelsa)
Lina Bo Bardi só esteve à frente do MAM restaurado por quatro meses (Foto: Manuel Sá @omanuelsa)

Onde a sua história e a da Lina se cruzam?
Comecei a estudar a Lina em 2009, quando fazia graduação no curso de arquitetura na PUC do Rio de Janeiro. Em primeira medida, o estudo começou um tanto amador, lendo bibliografias disponíveis e, o ato final desse processo, foi o concurso de ensaísmo da Revista Serrote, do Instituto Moreira Salles (IMS). Ganhei a edição de 2013, com o ensaio Arquitetura dos Intervalos, que escrevi a partir de uma história que a Lina contava de quando o John Cage esteve no Masp, em 1985. Cage teve uma catarse quando conheceu o museu e chamou o vão livre do Masp de arquitetura de liberdade. 

Foi engraçado, porque a primeira vez que fui para São Paulo fazer entrevistas com pessoas que tiveram contato com a Lina, entrevistei quatro pessoas e três delas falaram sobre a história. Todos falam como se fosse uma história incrível, mas ninguém sabe direito quem era o John Cage e o que era liberdade para ele. Aí fui estudar o Cage e deu nesse ensaio. Esse foi o primeiro período que estudei a Lina, entre 2009 e 2013. Depois disso, continuei escrevendo para o blog do IMS e Folha de S. Paulo, mas não era algo sistemático. A intenção de escrever uma biografia da Lina veio a partir do convite do meu editor atual, Flávio Moura. Desde então, foram mais de 2 anos e meio de pesquisa para escrever o livro durante a pandemia. Eu sempre brinco, que de uma certa maneira, finalizar o livro da Lina foi minha salvação para manter a saúde mental nesse período. Para escritores, a pandemia ajuda, curiosamente.

Por que a Lina veio para Salvador no final dos anos 50?
É importante dizer que a Lina não se mudou para Bahia definitivamente, ela morou o tempo todo no Hotel da Bahia, no Campo Grande. Nesse período, ela viveu numa ponte aérea entre Salvador e São Paulo, mas ela foi para Salvador devido a dois convites. O primeiro foi para ser professora da UFBA, em 1958, onde deu um curso semestral, mas não chegou a ser efetivada. Já o segundo, foi o convite feito pelo então governador Juracy Magalhães, para a Lina ser a diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, que ainda era no Teatro Castro Alves.

Lina Bo Bardi à direita durante a inauguração do MAM em 1960, no foyer do Teatro Castro Alves (Foto: Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia)
Lina Bo Bardi à direita durante a inauguração do MAM em 1960, no foyer do Teatro Castro Alves (Foto: Acervo Museu de Arte Moderna da Bahia)

Ao mesmo tempo em que Lina Bo Bardi foi convidada para estar à frente do Museu de Arte da Bahia num intuito de “europeizar” a cultura da cidade, a arquiteta possuía um grande apreço pelo interior e pelas tradições da Bahia. Afinal, o que Lina representou para a sociedade baiana na década de 60?
A Lina, quando veio para Salvador, entrou num projeto mais amplo, do então reitor da UFBA Edgar Santos, quando foram trazidos muitos intelectuais no intuito de erguer a universidade. Esperavam que ela pudesse de alguma forma europeizar a cultura que estava sendo desenvolvida, porém a Lina, apesar de ser imigrante, não veio com a intenção de “civilizar” o Brasil. Ela teve um interesse genuíno pela cultura brasileira, que floresceu substancialmente na Bahia.

Como se deu o episódio envolvendo Lina e a estátua de Antônio Conselheiro? Aquilo aproximou Lina do público em geral?
Essa história é muito bonita. Ela encontrou a estátua do Antônio Conselheiro, que o Mário Cravo Júnior tinha feito há alguns anos e não estava dando muita importância. Ela colocou aquela estátua na frente do Teatro Castro Alves, então sede do Museu de Arte Moderna, sabendo que o Forte de São Pedro está do outro lado da rua. Então, houve um confronto com os militares ali e nisso ela acabou estabelecendo um vínculo direto com o povo, que ia colocar velas no fim de tarde nos pés da estátua, isso quando ainda existia toda uma ideia de que o museu era um lugar apenas para elite. 

Para constituir o acervo do MAM, Lina viajou diversas vezes pelo interior do Estado e, nessas viagens, se deparou com o que chamou de pré-artesanato. O que eram esses objetos e porquê foram importantes para a arquiteta?

A ideia do pré-artesanato vem de um objeto simples, mas de um raciocínio muito sofisticado. São aqueles objetos que já cumpriram seu ciclo de consumo e são apropriados por pessoas que fazem pequenas conversões, uma lata de óleo de carro que vira uma caneca, por exemplo. Ou seja, se tornam objetos utilitários e não é necessário ser um projetista para fazer isso, o que é fundamental. 

Mas, a ideia de artesanato não vem de bugigangas que vendem em loja de turistas (risos). O sentido original do artesanato é aquilo que é feito pelas mãos, sem divisões de tarefas, e foi a forma que a humanidade funcionou durante muito tempo. Já no século XIX, para aumentar a produção, começou a inserção das máquinas. A Lina tinha consciência de como foi a evolução dos meios produtivos mundiais ao longo da história. O pré-artesanato, que ela encontrou no Nordeste e no qual a pessoa se apropria e faz poucas modificações, é um ponto de partida novo. É anterior a como a Europa começou a produzir na Idade Média, é como se voltássemos todas as casas para criar algo que é absolutamente novo. Na visão da Lina, esse era um projeto econômico, político, social e sociológico. Para ela, aquela latinha de óleo que virou bule, era uma forma de pensar de novo o Brasil. 

Tanto que, em 1961, ela publicou um texto em que dizia que o Brasil estava numa encruzilhada: ou iria para um caminho de modo de produção autêntico, que nasce do pré-artesanato nordestino, ou ficaria a vida inteira no papel de importador acrítico de meios de produção estrangeiros. O projeto do MAM, era para que esse primeiro caminho fosse desenvolvido, mas veio o golpe militar e aí ficou muito claro que o Brasil seguiria o outro. 

Exposição de abertura do MAM em 1960 - Lina foi uma das responsáveis por aproximar o grande público do museu. (Foto: Acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia)
Exposição de abertura do MAM em 1960 – Lina foi uma das responsáveis por aproximar o grande público do museu. (Foto: Acervo do Museu de Arte Moderna da Bahia)

Como foi a trajetória da Lina à frente do Museu de Arte Moderna da Bahia, entre 1959 até 1964?
Quando Lina era a diretora do MAM e ele ainda era no Teatro Castro Alves, o museu funcionava como uma espécie de pólo aglutinador de eventos muito brilhantes. Houveram exposições de artistas locais, como Mário Cravo Júnior e Carybé, além de exposições internacionais que não chegaram nem a ir para São Paulo, mas passaram por Salvador.

O projeto de restauração do MAM não era só um projeto do Museu de Arte Moderna da Bahia. Esse nome foi o que o então governador Juracy Magalhães deu, porque queria disputar com o Museu de Arte Moderna do Rio, na briga dele com o jornal Correio da Manhã. A ideia da Lina sempre foi criar um museu de arte popular. O projeto de mudar o museu para o local em que é hoje, o Solar do Unhão, não foi só um projeto de restauração daquele espaço. O MAM seria um centro de pesquisa e desenvolvimento do pré-artesanato, que a Lina encontrou no Nordeste. 

Porém, o golpe de 64 chegou muito rápido e o projeto não foi concretizado. O único fruto dessa ideia foi a exposição Nordeste, que aconteceu em 1963, na qual ela fez uma catalogação belíssima dessa produção popular brasileira. A trajetória da Lina no MAM, se encerra depois da imposição do exército da exposição de objetos subversivos e ela vê que alguns colaboradores ajudaram na montagem. Numa manhã de agosto de 1964, ela demite um desses colaboradores, escreve sua carta de demissão e pega um avião para São Paulo.

Descreva quem foi Lina Bo Bardi em poucas palavras.
A Lina foi uma grande arquiteta, num momento que arquitetas mulheres eram raríssimas. Ao mesmo tempo, é fascinante o quão complexa e contraditória ela era. Certamente, ela odiaria a colocação dela como santa por alguns arquitetos brasileiros hoje. Ela teve muitas contradições, se dizia de esquerda, mas em muitos momentos esteve próxima dos poderosos, por exemplo. Era alguém que se disse militarista no fim da vida, mas teve um inquérito militar nas costas. Se dizia antifeminista, militarista e comunista, e tais contradições são muito sedutoras. Ao longo do tempo, percebi que ela não era uma imigrante normal, pois tinha uma relação com o Brasil muito singular. A Lina teve um projeto de Brasil.

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