Tina Melo: das margens do Paraguaçu à Baía de Todos os Santos

Ex-aluna da Escola de Belas Artes da UFBA, Tina usa sua arte para expressar aquilo que a incomoda no mundo. 

*Por Vanice da Mata

Foi em meio às linhas e tecidos de sua avó, dona Júlia, que Maria Cristina de Santana Melo – a artista Tina Melo – herdou o gosto por inventar. Desde pequena desenhava suas roupas, executadas com precisão por Maria Das Dores, sua paciente mãe. Da caixa de costuras para a Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) foi um pulo. “Minha mãe não queria me deixar vir para Salvador para morar sozinha e fazer Artes Plásticas”, revela a cachoeirana. A vontade de ser ela mesma falou mais alto e dona Dolores só foi saber que a filha tinha planos para a universidade quando o cartão de identificação bateu à sua porta, quando passou no vestibular ao fim de 2001.

De lá para cá Tina mudou muito. Começou seu percurso mais próxima da pintura –  tendo uma influência particular de Suzart, seu quase-conterrâneo, filho de Muritiba-BA – e teve nas Bienais do Recôncavo o ambiente ideal para estimular seu talento. O incentivo fundamental para cursar Artes Plásticas veio de Ilmajane, professora de Literatura do colégio em que estudou em Cachoeira, a Escola Simonton.

Na UFBA, Tina passou a estudar Expressão Tridimensional com o professor Biriba e, então, rendeu-se à performance. Ayrson Heráclito (Bahia-Brasil), Joseph Beuys (Alemanha) e Marina Abramovic (Sérvia) são outras importantes referências. “Na verdade eu tinha um medo da performance porque era você, ali, com o seu corpo,  e eu estava acostumada a sempre colocar o trabalho com os outros suportes, e não a gente se expondo. A performance é esta linguagem vivencial. Além disso tinha ideia de que era um ‘espetáculo’, e depois eu vi que poderia ser algo muito simples também. Apesar de atualmente vir trabalhando muito com ela e com a instalação,  escolho a técnica quando reconheço que esta ou aquela é a melhor para comunicar o que quero”, esclarece a artista.

Tina é consciente de que grande parte de sua inspiração vem de leituras que faz, inclusive em áreas como a antropologia, sociologia e história. É impossível separar os temas com os quais trabalha de sua própria vida. Mulher e negra, ela admite-se incomodada, dentre outras questões, com o lugar do feminino em nossa sociedade e afirma que seus trabalhos partem do que a inquieta. “Eu nunca gostei de ficar mostrando só coisas bonitinhas. Até acho bacana, mas eu acabei sempre partindo muito do incômodo”, diz. Machismo é um tema recorrente em suas produções, bem como a violência e o racismo.

Obras "Dá prá ver que mudou" (parede) e "97 por dia" (piso). Foto: Vanice da Mata
Obras “Dá prá ver que mudou” (parede) e “97 por dia” (piso).
Foto: Vanice da Mata

Na exposição mais recente de que participou, em agosto último, na galeria do Instituto Cultural Brasil Alemanha (ICBA), a artista levou para o OcupAção pinturas, instalações e cartazes que dialogaram com estes temas, motivados por uma questão central: o mal–estar nas cidades. As parceiras Roberta Nascimento e Thalita Andrade completaram o time de realizadoras que, além da exposição, promoveram mesas de formação gratuitas em linguagens artísticas como o grafite, instalação, performance e intervenção urbana. “Roberta eu conheci na época em que estudei na Residência (Universitária 3), da UFBA. Já Thalita foi quando ela fotografava trabalhos de teatro. Resolvemos montar a exposição depois de a gente reconhecer as afinidades em nossos trabalhos”, diz Tina. A versão inicial desta mostra aconteceu ainda em 2012, instalada na Galeria do Conselho, no Largo dos Aflitos.

Ainda, os incômodos A religiosidade de matriz africana é outro tema que tem feito Tina trabalhar bastante. Em novembro, a artista aportará no Centro Cultural Plataforma com uma vídeo-instalação em que leva para aquele equipamento cultural “a ideia do fluxo de africanos escravizados através do Atlântico”, conta. Para tanto, utilizará como um dos recursos estéticos o sal grosso – menos para espantar maus espíritos do que para tentar representar o espaço marítimo que se interpõe entre continentes.

Desde 2010, Tina vem problematizando o preconceito e denunciando suas formas de se manifestar. “Especialmente depois que passei a me relacionar com um homem negro, que usa dreadlock como eu, passamos por diversas situações juntos. É recorrente você perder oportunidades no mercado de trabalho pelo cabelo que você tem, por ter uma barba ou mesmo por se apresentar com uma determinada estética que não é a padronizada. Pessoas que vêm pegar no seu cabelo e perguntar se é de verdade, ou senão  perguntar porque é que eu fiz ‘isso’ como o meu cabelo. Outra forma muito recorrente de preconceito é negar por conta da religiosidade, o Candomblé. Vi amigos meus passarem por discriminação com aquelas velhas histórias de que a religiosidade não presta, que é coisa do mal”, verbaliza Tina, quando questionada sobre como o racismo passou a ser pauta do seu trabalho.

Detalhe da obra "97 por dia". Foto: Vanice da Mata
Detalhe da obra “97 por dia”.
Foto: Vanice da Mata

Mesmo sendo filha de Cachoeira, a artista só veio a se aproximar da religiosidade de matriz africana quando já estava em Salvador. Hoje acompanha de perto o calendário litúrgico de uma casa situada em Alagoinhas, mas afirma que não é “feita”. Sabe que na mitologia africana Xangô é quem rege sua cabeça. Quem mais para dar a coragem desta “menina mulher da pele preta”, filha de águas igualmente pretas, em algum lugar às margens do Paraguaçu?

Em sua terra, um dos berços do Candomblé no Brasil, Tina nada conheceu desta religião. Sua avó, Dona Júlia, tinha um medo imenso. E assim também cresceu sua neta. Para ambas, o Candomblé era algo ruim. Este medo só não foi suficiente para impedir que Dona Julia, em vida, confeccionasse a boneca de tecido feita em dimensões humanas que adorna a entrada principal da sede da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira e que lá está, até hoje, envolta numa proteção de acrílico. A avó de Tina era muito conhecida na região por suas bonecas que, feitas em tamanho menor, foram a principal fonte do sustento – e da fama – da família. Mas isso até os aluguéis de imóveis (adquiridos com o fruto do trabalho artesanal de dona Júlia) passarem a trazer maior liquidez para as suas vidas.

É certo que a Irmandade cultua Nossa Senhora da Boa Morte, uma santa católica, mas para integrar esta organização político-religiosa todas as senhoras precisam ser sacerdotisas de Candomblés. Talvez dona Júlia nem disso soubesse; talvez, a deferência daquelas negras com a fé “oficial” as tornasse mais dignas frente aos olhos da maioria, incapaz de lhes enxergar a nobreza por si mesmas. Vai-se saber…

No caminho De suas próprias roupas para cenários e figurinos de personagens no teatro em Salvador, ou nas fantasias das festas em homenagem à Nossa Senhora da Ajuda, em Cachoeira; da maquiagem à pintura em tela; da instalação à performance, todo este universo diz um pouco de Tina. Hoje esta jovem moça de 28 anos integra a primeira turma de pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais do Instituto Federal da Bahia (IFBA). Quando questionada sobre a importância da verdade para sua produção enquanto artista, ela é firme. “Meu trabalho parte de uma coisa que me incomoda, e isto não me incomoda pela metade. Eu não posso ser pela metade ao tratar disso. Já que é algo que mexe comigo, eu não vou fingir que mexe pouco, ou que eu posso lidar de uma forma mais superficial”, reconhece a artista que, inclusive, valida a escolha daqueles que se utilizam daquilo a que chamou “ficções” para lidar com a verdade a que se refere.  A estratégia dela é encarar tudo de frente. “Algumas pessoas chamam meu trabalho de óbvio, de panfletário, por se tratar de um tipo de arte que se propõe a ser mais direto e incisivo. Já que tenho a arte como linguagem, utilizo-a politicamente. Poderia utilizar poeticamente, mas eu fiz esta escolha – de utilizar de maneira mais política, que é quase um protesto. Então não me preocupo que digam ‘ah, mas tá muito direto, tá muito óbvio’ porque é exatamente o que quero dizer. E eu digo o que quero dizer. Não vou arranjar uma subjetividade para mascarar, só para parecer mais difícil, mais ‘cult’. Eu vou lá, e digo”.

"Passo Este Ponto" Foto: Vanice da Mata
“Passo Este Ponto”
Foto: Vanice da Mata

Saiba mais sobre Tina Melo acessando o blog da artista (clique aqui).

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