Lucas da Feira: sujeito histórico de resistência à escravidão é protagonista de espetáculo

Com mais de 1000 visualizações em duas exibições, a peça propõe o olhar de patrimônio memorial e negro para a história de Lucas 

                                                               Por Inara Almeida*

Quando se fala sobre a memória de Feira de Santana, provavelmente você vai ouvir a respeito de Maria Quitéria, que nomeia uma das mais importantes avenidas da cidade e é reverenciada nas escolas e centro culturais, quase como se fosse a única. Entretanto, há uma figura que guia a cultura popular da cidade há mais de 170 anos, divide opiniões quanto ao seu caráter, mas é, incontestavelmente, símbolo de resistência. E é essa figura, Lucas Evangelista, mais conhecido como Lucas da Feira, que o Grupo Recorte de Teatro tornou protagonista no espetáculo Lucas da Feira: O Sujeito antes do Mito, que estreou em 2019 no CUCA e foi exibido através do Youtube em 2021.

Fundado pelo historiador Fernando Souza, o grupo surgiu durante oficinas de teatro do CUCA e já exibiu três espetáculos, o mais recente sobre Lucas, que é parte do projeto “Lucas da Feira: patrimônio histórico, memorial e negro de Feira”, financiado pela Lei Aldir Blanc. A peça retrata a história de Lucas Evangelista, um negro escravizado que fugiu e passou mais de 20 anos entre as matas e estradas que ligavam Feira a outras cidades do interior da Bahia, foi autor de diversos crimes e, portanto, carrega o estigma de bandido para uns, enquanto outras pessoas o consideram sinônimo de sobrevivência e luta. Lucas foi executado e, mais tarde, daria a feira o apelido de “terra de Lucas”, que pode ser ouvido até hoje por pessoas mais velhas do interior. 

As duas exibições do espetáculo geraram feedbacks muito positivos e, para Fernando, a produção é um híbrido entre teatro e cinema. Quando questionado sobre o momento que passou a ter interesse em escrever sobre Lucas Evangelista, o diretor diz que o protagonista faz parte da sua mente de dramaturgo e professor. “Conheci a história de Lucas na faculdade e sempre me causou muito interesse. Li muito, teses de doutorado, dissertações de mestrado e conversei com pessoas. Fiz uma pesquisa bem apurada e tentei trazer isso para o texto teatral”, afirma. 

Apesar de Lucas da Feira e sua história serem os grandes protagonistas do espetáculo, há também outros personagens importantes que compõem o cenário do período escravocrata e revelam o contexto em que Lucas estava inserido, além de outras discussões relevantes, como os abusos que pretos eram submetidos, principalmente, sexuais em relação às mulheres escravizadas. Um dos papéis que mais se destaca na apresentação, Jejes, a mãe de Lucas, é interpretado por Sara Barbosa, que disse enxergar muita força e fé na personagem, que recebeu como um grande desafio. “Jejes representa todas as mães pretas que perdem seus filhos pra uma violência fruto do racismo estrutural. Minha personagem traz as marcas de não poder ser mãe como se deve. Jejes perde o direito de ser mãe por várias vezes por estar na condição subumana de escravizada. Mas, ao mesmo tempo, vejo nela muita força através de sua fé e de sua ancestralidade.”. 

Entre o bom e o mau, a resistência
O sujeito antes do mito, presente no título do espetáculo, faz referência ao fato de Lucas representar, para boa parte dos moradores da cidade, uma mitologia, há poucos registros oficiais que comprovem a sua existência, apesar de uma imensa variedade de narrativas. Para o mestre e historiador Carlos Alberto, as visões contrárias em torno do caráter e representatividade de Lucas não são relevantes para o espetáculo. “Esse maniqueísmo não serve para a história e para a arte. O importante no texto é a construção desse mito, dessa memória. Querendo ou não, a construção da memória de Lucas guia a cultura popular de Feira de Santana”, afirma. 

Ao longo da história de Feira, o processo de modernização implicou no silenciamento de figuras como Lucas da Feira e, apesar de estar presente na memória da cidade, existe muita resistência por parte do poder público em reconhecer Lucas Evangelista como uma figura importante na cultura feirense. “Havia uma pretensão de modernizar feira, torna-la a metrópole sertaneja e isso tudo representa os interesses de uma elite que busca negar as presenças de sujeitos que deveriam ser, se não varridos, mas silenciados da cidade.”, diz Carlos, que ressalta não haver obrigatoriedade de registro oficial para o reconhecimento da memória de Lucas. 

Apesar da dualidade de opiniões, para Jailton Nascimento, ator que deu vida ao protagonista no espetáculo, Lucas Evangelista é um patrimônio histórico não só de Feira de Santana, mas da Bahia. “Lucas faz parte da nossa história, de uma história de resistência do povo preto que não entendia o processo de escravidão de uma raça para outra”, diz. Jailton também acredita que a história, muitas vezes, é contada apenas pelo ponto de vista de quem detém o poder e isso contribui para a invisibilidade da história de Lucas da Feira. 

*voluntária da Agenda Arte e Cultura

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