Criar as crianças é um dever de todxs: mães da UFBA falam sobre maternidade e universidade

 

Desafios, preconceitos e dificuldades da vida materna no espaço acadêmico

Por Noédson Santos

Tornar a maternidade um assunto da esfera pública não é uma tarefa simples para as mães universitárias. Estudantes e professoras da UFBA contam um pouco sobre os desafios, preconceitos e dificuldades que enfrentam ao trazer a vida materna para o espaço acadêmico. Os relatos de muitas mães revelam que há muita solidão no processo de criar e educar um filho. Muitas vezes são impedidas de acessar aos cinemas, teatros, salas de aula e diversos outros espaços acompanhadas de seus filhos, revelando que a sociedade excluiu o debate público sobre a tarefa de cuidar das nossas crianças.

As mulheres representam 57,2% dos estudantes matriculados em cursos de graduação,  de acordo com o último Censo da Educação Superior (2016). Entretanto, percebe-se uma insensibilidade institucional que dificulta a conciliação de projetos distintos, porém, que não deveriam ser concorrentes: a maternidade e uma carreira acadêmico-profissional.

“Temos que visibilizar o trabalho materno. O trabalho de cuidar do outro, que na verdade deveria social, porque todo mundo precisa cuidar de criança, mas, que fica exclusivo para uma mulher lá [no ditado] ‘quem pariu Mateus que o balance’”, ressalta a professora Juliana Prates, do Instituto de Psicologia da UFBA e coordenadora do projeto Crianças na UFBA  [leia a entrevista aqui].

Esse espaço é mesmo nosso?

Mães e parte da comunidade da UFBA, estudantes da graduação, pós-graduação ou docentes relatam a falta de acolhimento institucional, pouca receptividade estrutural e muitos estigmas acerca da maternidade. E, por isso, questionam-se: “esse espaço é mesmo nosso?”. Para a professora Juliana Prates, uma frase resume muito do que é essa conciliação entre vida acadêmica e maternidade: “o trabalho te trata como se você não tivesse filho e os filhos te tratam como se você não tivesse trabalho”.

“Evidentemente, há uma cobrança dos filhos e também do trabalho acadêmico, que diferentemente de outros trabalhos, não tem fim. Ele não se extingue no espaço da Universidade. O trabalho de professor implica, necessariamente, levar trabalho para casa: corrigir atividades, provas, preparação de aulas, etc”.

Tanto do ponto de vista espacial, quanto simbólico, as mães comentam sobre uma estrutura universitária que ainda não está pronta para receber crianças. Horários de aulas inflexíveis, falta de berçários e trocadores, dificuldades no acesso às salas de aulas, poucos auxílios financeiros e insuficiência do serviço de creche da UFBA são algumas das questões suscitadas pelas estudantes e professoras universitárias. A creche da UFBA que é gerenciada pela Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Assistência Estudantil (PROAE) foi procurada pela reportagem para comentar sobre a insuficiência de vagas, entretanto, não retornou o contato até o fechamento desta reportagem.

Débora Lima Albuquerque, 24, estudante da Licenciatura em Teatro, fala que sente falta de espaços que acolham as mães. “Não tem um banheiro adequado para as crianças e bebês. Acho que poderia ter uma sala na qual eu pudesse ficar com o meu filho entre uma aula e outra. Ou seja, uma sala com tatame, trocador e um microondas pra poder esquentar uma mamadeira ou alguma coisa assim”.

Débora fala da necessidade de mais espaços para as mães dentro da universidade (Foto: Acervo Pessoal)
Débora fala da necessidade de mais espaços para as mães dentro da universidade (Foto: Acervo Pessoal)

Além de todas essas questões, as mães ainda têm que lidar com as estruturas acadêmicas que se sedimentam sobre um machismo histórico e práticas discriminatórias contra as mulheres. Joelma Stella, 34, estudante de Produção Cultural, passou a graduação inteira no Bacharelado Interdisciplinar em Artes acompanhada do seu filho recém nascido, Caetano Inã, hoje com 5 anos.

Ela teve um episódio depressivo depois de ter sido constrangida na sala de aula por um professor que não aceitou a sua presença com o bebê naquele ambiente. Ele sugeriu que Caetano estava “atrapalhando” o bom andamento das atividades.

“Meu filho tinha um ano e pouco e, quando ele ficava muito agitado, eu saía da sala, ficava andando, e voltava quando ele estava mais calmo. Isso é um processo muito desgastante. Psicologicamente, a mãe que está com o filho se sente muito desgastada, pois se sente constrangida por estar ‘atrapalhando’ os outros, se sente culpada porque você não consegue acompanhar o ritmo da matéria como você gostaria, sente-se frustrada com a insensibilidade das pessoas sobre o fato de que uma criança chora, mas só quando você está nesse outro lugar é que você se dá conta de como é uma situação complexa”, desabafa a estudante.

Joelma passou por uma situação desgastante em sala de aula ao levar o filho Caetano, que era recém nascido (Foto: Acervo Pessoal)
Joelma passou por uma situação desgastante em sala de aula ao levar o filho Caetano, que era recém nascido (Foto: Acervo Pessoal)

Joelma conta que, com o passar dos semestres, passou a entender que também tinha o direito de estar nas aulas. “Naquela época eu ainda não tinha o entendimento e a maturidade para compreender que eu tenho o direito de estar aqui como qualquer outra pessoa que conquistou uma vaga para estar aqui. Seria importante ter esse acolhimento tanto dos professores quanto dos colegas”, diz.

A estudante do BI em Artes Ana Morina, 26 anos, também optou por continuar na faculdade, apesar das dificuldades. “Pego aulas durante a tarde, que é o momento em que ela está mais disposta, mais tranquila, então é mais fácil para ela administrar a dinâmica de estar na Universidade. Não optei por deixá-la com outras pessoas. Minha família não é daqui, então eu que tenho que dar conta desse cuidado. Sou mãe solo. Então, sou basicamente eu mesma. A rotina, o dia a dia, os afazeres domésticos, pra tudo somos nós duas”, conta.

“Adaptei o meu estudo à dinâmica dela. Então, acabei abrindo mão de algumas coisas que eu queria estudar nesse momento por que eu não consigo encaixar na nossa rotina. Não é um peso fazer essas opções, mas, é claro que nós mães gostaríamos que tivesse mais apoio pra gente estar aqui na Universidade com nossos filhos”, diz Ana Morina

Romantização da maternidade

Público e privado se conflituam quando o assunto é maternidade. Num pólo, observa-se uma estrutura machista e patriarcal que determina como dever exclusivo da mãe o cuidado com as crianças; noutro, a retórica de que a vida maternal é privada e que não cabe expor histórias, rotinas e intimidade. Isso tudo está muito ligado à romantização histórica da maternidade, como explica a professora Juliana.

“É importante ressaltar que é a romantização da maternidade que prega essa figura da mãe abnegada que faz tudo. Ela faz tudo por que ela tem que fazer tudo. Não é uma questão de abnegação, de grande amor, de amor instintivo, de que essa mulher vive esse amor acima dos outros. Acho que isso é romantizar algo que é uma exploração. Do abandono de outro, por isso que você tem que dar conta das demandas das crianças como um todo e do trabalho”, defende Juliana Prates.

Ana Paula Oliveira, 32, estudante da pós-graduação (mestrado) em Literatura e Cultura (ILUFBA), fala sobre uma suposta síndrome da culpa que recai sobre as mãe que precisam estudar, trabalhar e cuidar dos filhos. Ela é mãe de uma adolescente de 15 anos e está grávida de sua segunda filha.

“Durante todos esses anos foram assim, tinha a questão da culpa, a questão de com quem deixar, como pagar, já que eu não sou de classe média/alta, pra poder pagar uma babá pra olhar a minha filha. Essa é uma das questões mais complicadas para a maioria das mulheres negras que estão nesse espaço de vulnerabilidade econômica”, relata Ana Paula. Atualmente, ela faz uma pesquisa sobre “Universos sensíveis: afetividade afrofemina na escrevivência de Conceição Evaristo” e planeja a escrita de sua dissertação após o nascimento da segunda filha.

Ana Paula Oliveira, estudante de pós-graduação, relata as dificuldades para conciliar a vida acadêmica e a maternidade (Foto: Gabriel Oliveira)
Ana Paula Oliveira, estudante de pós-graduação, relata as dificuldades para conciliar a vida acadêmica e a maternidade (Foto: Gabriel Oliveira)

E a estudante Joelma ressalta que as “crianças não são bem-vindas em espaços de poder, assim como mulheres não foram durante muito tempo, e como até hoje não são bem-vindas. Mulheres e crianças não ocupam espaço de poder dentro dessa sociedade. A presença delas não é bem vista e não é tolerada. Para que haja a presença de uma criança num espaço de poder como uma universidade, é preciso que a comunidade universitária esteja disposta a lidar e acolher essa criança”.

Ana completa que só após uma reivindicação, as aulas foram disponibilizadas à noite. “As aulas e turmas não contemplam a rotina das mães. A pós-graduação é toda diurna. Só no ano passado (2018), a partir de uma reivindicação junto aos professores, é que foram oferecidas turmas à noite”.

As redes de solidariedade
Com a ausência de um amplo suporte às mães, muitas contam com um apoio de uma rede de solidariedade que conjuga amigos, familiares, vizinhos, colegas de faculdade e professores. Apesar de muitos relatos negativos, vê-se que há uma rede espontânea que se forma para dar conta da lacuna de creches, bolsas de auxílio e espaços de acolhimentos às mulheres e suas crianças.

Muitas mães falaram à reportagem sobre os desafios de lidarem com a maternidade sem a presença dos pais. É preciso pensar que quando se “diz que a criança não vai, mas quem cuida da criança é uma mulher, a gente tá dizendo que é ela [a mulher] que não vai. É bem necessário falar sobre isso, pois um ambiente sem crianças, implica um ambiente sem mulheres. É preciso estratégias criativas para formar esse lugar. E ele pode ser potente: o encontro da maternidade com o trabalho. Mas é preciso que todos colaborem. E que se questionem”, sinaliza Juliana Prates.  

E acrescenta: “A rede de solidariedade de mulheres já existe, senão a gente não suportaria e sucumbiria se não houvesse essa rede. É a minha vizinha que toma conta do meu filho quando eu vou pra tal lugar, é a mãe do coleguinha que leva pra escola quando eu tenho uma reunião e atrasa; é a colega de trabalho que não marca supervisão de noite porque não tem onde deixar os meninos. A gente vai criando essa solidariedade, que existe, mas, ela é marginal. Ela é invisível e é uma rede que é como se fosse problema de cada um resolver”.

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