Baianos comemoram 260 anos da Lavagem do Bonfim

Celebração une tradições religiosas e laicas numa comemoração que reúne quase um milhão de pessoas

*Por Natácia Guimarães

Os baianos comemoraram na última quinta feira, 16,  os 260 anos da Lavagem do Bomfim e o reconhecimento do ritual como patrimônio imaterial do Brasil. A Lavagem, uma verdadeira celebração da baianidade, é uma festa de toda a cidade e conjuga diversas tradições religiosas, pessoas, cheiros e energias. Na quinta-feira da Lavagem, gente de Santo dos Candomblés de toda a Bahia, vendedoras de acarajé, fiéis de diversas Igrejas cristãs, gente sem religião ou que pratica varias religiões, mais de um milhão de pessoas seguiram a pé os oito quilômetros que separam a Igreja da Conceição da Praia, localizada no Bairro do Comércio, e a Colina Sagrada, sintonizados em um só ritmo em respeito ao Senhor do Bomfim.

O cortejo começou às 9h da manhã. No entanto,  às 7h30 já se podia ver os primeiros caminhantes: participantes da corrida sagrada que há alguns anos abrem o Ritual da lavagem. Logo após a saída dos corredores, uma celebração ecumênica é realizada no adro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio, com a participação de representantes da Federação Espírita da Bahia, Igreja Batista, Federação do Culto Afro Brasileiro, Hinduísmo e Organização Brahma Kumaris. Assim, deu-se início ao cortejo rumo à colina sagrada.  As baianas foram as primeiras no desfile e, logo atrás, podia-se ver blocos independentes e os caminhantes que confiavam no forte dito popular “quem tem fé vai a pé” para concentrar energia e chegar ao destino esperado.

Quando as pessoas chegam à colina sagrada, aos “pés” da igreja, a emoção exala na multidão. O empurra-empurra, o calor e os pés cansados são esquecidos quando se ouve o Hino do Bomfim que Caetano Veloso compôs. “Desta sagrada colina, mansão da misericórdia, dai-nos a graça divina, da justiça e da concórdia”. De diversos credos, nacionalidades, faixas etárias e sociais, todos buscam uma só coisa: a benção do Senhor do Bonfim. A baiana dá  axé – “uma mistura de boa energia transmitida pelos orixás que são simbolizadas por esses elementos (óleos, folhas, pipocas entre outros)”, diz a baiana entre um fiel e outro. E são muitos, que logo depois vão seguir mais uma “crença”: amarrar uma fitinha do Bonfim no gradil que protege o adro da igreja e fazer os três pedidos. Durante a tarde, a feijoada e os blocos de bandinhas invadem a celebração e tudo vira festa.

Alguns voltam logo após chegar à colina. Outros, porém, ficam curtindo até a noite o dia do Senhor do Bonfim. A verdadeira mistura do sagrado com o profano que já faz parte, não só da festa, mas do próprio baiano. Seja qual for, a bênção está dada, pois todos os caminhantes e toda a cidade recebem uma nova energia para enfrentar o novo ano, iluminado por “todos os santos, encantos e axés”.

Em entrevista à Agenda Arte e Cultura, o sociólogo Eduardo Alfredo Morais Guimarães, doutorando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos (CEAO/FFCH/UFBA) fala um pouco sobre a tradição que envolve a Lavagem das escadarias da Igreja do Bonfim.

Foto: Bahiatursa/Divulgação
Foto: Bahiatursa/Divulgação

Agenda Arte e Cultura UFBA – Como surgiu a festa do Bonfim e a lavagem?

Eduardo Guimarães – A Lavagem do Bonfim originou-se de um costume estreitamente ligado ao Catolicismo popular de lavar (preparar) a igreja para as festividades em louvor ao santo padroeiro. A história da Lavagem se confunde com a própria história do santuário. É realizada na quinta-feira anterior ao dia da Festa – segundo domingo depois da Epifania – pelos fiéis devotos do Senhor do Bonfim e é uma obrigação dos devotos. A sua realização interfere drasticamente no cotidiano da cidade mobilizando milhares de pessoas, que percorrem os oito quilômetros que separam a Igreja da Conceição da Praia do Santuário do Bonfim.

A Lavagem vem passando por profundas mudanças, sobretudo nos últimos anos com a ação cada vez mais contundente da indústria do turismo que vende a festa para o mundo como uma grande manifestação do sincretismo religioso. No entanto, não obstante a crescente mercantilização da festa, a defesa da tradição é uma preocupação cada vez maior, sobretudo agora com a tombamento da Festa como patrimônio imaterial.

Agenda – Quem abre o cortejo em direção à colina sagrada são as baianas,  principais personagens na lavagem da Igreja. Como houve a inserção dessas personagens?

Eduardo – Como já falei, a lavagem do Bonfim tem sua origem na preparação do santuário para as festividades em louvor ao Senhor do Bonfim e desde os primeiros tempos da devoção entre as pessoas que lavavam a Igreja destacavam-se as mulheres negras – quem realmente pegava na vassoura. Não há dúvidas de que com o passar do tempo a identificação do Senhor do Bonfim com o orixá Oxalá se solidificou, o que levou à hegemonia das baianas – principais personagens – no ritual. Com a hegemonia das baianas e das pessoas ligadas às religiões de matriz africana, a Lavagem ganhou novos significados – a Lavagem do Bonfim é um ritual de passagem que marca o fim de um ciclo temporal e o início de outro, é um ritual de limpeza e purificação.

A hierarquia da Igreja Católica não aceita a participação das baianas como personagens principais do ritual da Lavagem e, sobretudo, a identificação do Senhor do Bonfim com o Oxalá e ao longo dos anos tem tomado medidas para conter aquilo que eles denominam lado profano da festa. O tempo-espaço da festa é, assim, um tempo-espaço de tensão.

Agenda – Qual a relação entre a igreja católica e o candomblé na festa?

Eduardo – Como já disse, tem sido uma relação tensa. Ao longo dos anos a hierarquia da Igreja tem tomado medidas para conter o avanço do candomblé. No início do século passado a igreja chegou a ser fechada e a lavagem proibida. Em decorrência da força das religiões de matriz africana e da devoção dos baianos no Senhor do Bonfim foi autorizada a lavagem apenas do Adro e em 1976, Dom Avelar autorizou a abertura da porta central da Igreja, protegida por um gradil. Nesta última Lavagem a tensão virou polêmica a partir do chamamento do Capelão da Igreja do Bonfim para uma caminhada católica que antecederia o cortejo das baianas – “Lavagem de Corpo e Alma” em uma tentativa de separar o “sagrado”  do “profano”. O que é mais importante em tudo isso é que a lavagem do Bonfim é uma festa de todos. É um ritual sagrado para os milhões de devotos – do Senhor do Bonfim e/ou Oxalá. A Lavagem não tem um dono. Não pertence à Igreja Católica, a nenhum Terreiro de Candomblé ou outra entidade religiosa.

Agenda – Esse ano ocorreu o tombamento da festa como patrimônio imaterial da humanidade. O que o senhor pensa do tombamento?

Eduardo – Acho que foi muito importante para o reconhecimento da Lavagem como um Ritual de toda a Cidade. A Lavagem não tem um dono. O tombamento pode, inclusive,  ajudar a conter as tensões no interior da festa causadas pelas tentativas da Igreja Católica de separar aquilo que a hierarquia classifica como  “sagrado”  e  “profano”. Por outro lado, fica o alerta – tombar a Lavagem como Patrimônio Imaterial não pode ser entendido como congelar a festa! É preciso perceber que a festa tem uma dinâmica e que as mudanças sempre aconteceram e continuarão a acontecer. O tombamento pode ainda contribuir para uma compreensão mais aprofundada de duas questões de suma importância: a invenção da festa pelos devotos do Senhor do Bonfim e a produção da festa pela indústria cultural.

Eduardo Alfredo Morais Guimarães é doutorando do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos CEAO/FFCH/UFBA. Possui mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia (1994). Atualmente é professor assistente da Universidade do Estado da Bahia, e desenvolve atividades de consultoria ligadas à temática da economia solidária. Atuou na elaboração do projeto “Camaçari Solidária’ e “Catar para Transformar” aprovados nos editais SENAES 003 E SENAES 004 pela Secretaria de Cidadania e Inclusão da Prefeitura Municipal de Camaçari. Elaborou e Coordenou o Projeto Reforma Agrária e Inclusão Social no Baixo Sul da Bahia – aprovado pelo edital Petrobras Fome Zero (2005-2008), com ações em assentamentos de Reforma Agrária nas áreas de Agroecologia, Comercialização e agroindustrialização estruturadas nos princípios da Economia Solidária.

 

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