A música não pode parar: cantores baianos se reinventam em meio à pandemia

Os artistas buscam apoio nas redes sociais e conseguem driblar o cenário e lançar clipes 

Por Ruan Amorim 

 “Quem canta seus males espanta”,  já dizia Dom Quixote, personagem-título do livro escrito por Miguel de Cervantes, lançado em 1605. A frase, que permeia décadas e até virou bordão popular, encontrou seu ápice no período pandêmico, no qual músicos tiveram que se isolar e abandonar a rotina de shows presenciais. Para resistir ao grande mal do momento e lutar contra o silenciamento de suas vozes, artistas baianos buscaram se adaptar e criar estratégias para não deixar a música cessar. 

Em um processo lógico, por causa do confinamento em massa, a economia do mercado fonográfico foi afetada.  Uma pesquisa inédita da UBC em parceria com a ESPM traduz este cenário e revela que se viver de música já era difícil, agora, a situação se agravou, principalmente para cantores independentes. Segundo dados coletados pelas empresas, 86% dos 883 músicos que participaram da análise perderam renda.

“Além de ser artista e enfrentar a pandemia, eu sou artista independente, que não tem verba para investir na carreira. Então, o cenário é muito difícil pra mim”, é o que diz a rapper Candace. Desde 2017 a cantora trabalha com o rap e antes de se iniciar como artista desse gênero musical, ela era público do estilo e já se aproximava do setor participando de batalhas de Slam Poesia. Em 2020, em meio à pandemia, lançou sua primeira faixa, Maior Onda, que foi produzida na casa da cantora, tanto por falta de condições financeiras quanto para respeitar o isolamento social. 

Sem a animada rotina de se apresentar em eventos,  os artistas da banda de reggae independente, Mukambu, também sofreram. Quem fala sobre os danos colaterais da crise sanitária no dia a dia do grupo é Zeu Silva, compositor e guitarrista. Ele conta que longe das aparições em espaços de aglomeração e calor humano, os investimentos de produções, que vinham dessas ações, se tornaram escassos. 

“Tivemos que buscar alternativas para não parar as produções. Foi quando tive a ideia de criar a Campanha de Financiamento Coletivo através da plataforma Vakinha para gravarmos nosso primeiro EP”, explica Zeu. A iniciativa deu certo e o EP “Na Quebrada” foi lançado e pode ser escutado em diversos streamings musicais, como Spotify, Deezer e Apple Music.

Um bom feat: redes sociais e músicos
Em tempos de crises, se adaptar é necessário, mas nem sempre é fácil. Para ajudar nesse processo existem as redes sociais digitais. Agora, elas são os principais palcos em que músicos se apresentam, lançam novos singles e dialogam com o público. De acordo com uma pesquisa realizada pela Kantar, marca especializada em pesquisa de mercado, as redes sociais tiveram um crescimento de uso de 40% na pandemia, em especial, o Facebook, WhatsApp e Instagram. 

Então, como forma de driblar os efeitos negativos do cenário, Dog Ilha, nome artístico de William, que se encontrou no ramo musical aos 12 anos e até hoje, aos 24, continua no mercado compondo e cantando letras de funk e rap, usou as ferramentas tecnológicas a seu favor. Ele fez muitas transmissões ao vivo para não perder a conexão com os seus seguidores. “A live, em minha opinião, se tornou um meio superimportante para divulgação, não só do repertório, mas  também do nosso desempenho como artista”, explica.

Apesar das inúmeras possibilidades de interagir com o público via aplicativos, há aqueles que não conseguem se contentar com a comunicação virtual. Esse é o caso do cantor de rap, do recôncavo baiano, Uh! Neto. “Eu gosto de cantar para gente, de ver pessoas dançando e pulando. Adoro a resenha dos bastidores, a energia do palco e o calor humano”, desabafa sobre a saudade da rotina. Mas, sem poder exercer a velha conexão corpo a corpo com os seus fãs, ele teve que fazer um feat com as plataformas digitais para manter contato com os admiradores da sua música. 

“Estou usando muito os apps das redes sociais para poder continuar com o trabalho. Criei um quadro para interagir com as pessoas, o ‘Bom dia pá nós’, em que a galera manda mensagens de autoestima, amor e carinho para que eu compartilhe”.

Criatividade para resistir: os novos videoclipes

Produzir videoclipes, como forma de expor suas produções e gerar entretenimento, sempre foi tendência para cantores. Contudo, as imposições da pandemia também influenciaram esse domínio criativo, e mais uma vez os artistas tiveram que inovar e ser engenhosos para entregar o melhor conteúdo possível para os seus fãs.

Uh! Neto lançou sua nova música, Falo D’mais, em 16 de abril. A estreia contou com um clipe bem diferente do seu estilo habitual; uma produção quase toda em animação. A narrativa tem dois personagens, Keita e Kamali, que são apaixonados e precisam viver o amor em sua essência mais pura e individual, sem precisar ser compreendido por aqueles que estão observando de fora. A produção trouxe criatividade e casou com o contexto. “É, a gente[ a equipe de produção] já pensava nessa dinâmica de interagir com um casal que fosse pessoas mesmo e, ao mesmo tempo, pudesse dialogar como animação”, conta o cantor. 

“O clipe da faixa Maior Onda, a primeira que lancei, foi gravado na minha rua, perto da minha casa. Foi tranquilo, cumprimos os métodos de segurança, usamos máscaras, álcool em gel e o resultado foi incrível”, é o que diz Candace sobre a produção do seu clipe, que foi lançado no ano passado. A elaboração do projeto audiovisual da música da artista contou com uma equipe curta, apenas amigos que se disponibilizaram a ajudar e incentivar a carreira de Candace mesmo em um período adverso como a pandemia.

Na dinâmica de se atualizar ao mercado fonográfico e não deixar a música parar, Dog Ilha também lançou um videoclipe, Avisa Ai!, em parceria com a Palafita REC. O resultado foi satisfatório para o artista, que teve um grande bloqueio criativo causado pela situação caótica que assola o âmbito da saúde.

“Nessa pandemia me vi com o psicológico abalado, sem foco para compor. Encontrei-me perdido com tudo que estava acontecendo. Por isso, achei essencial lançar o clipe, pois assim como eu, há pessoas que precisam sentir que vai ficar tudo bem, e nada melhor para transmitir isso do que a arte, que por sua vez toca em todos os corações”, afirma Dog Ilha.

A banda Mukambu, que já havia utilizado o financiamento coletivo para contornar a economia defasada do setor cultural, também foi contemplada com a produção de um clipe, após vencer o Festival Música Viva, da produtora Panela de Barro. Assim, lançaram junto com o EP “Na Quebrada”, o clipe “Pé no Chão”. Além disso, também conseguiram produzir outro produto audiovisual, o clipe “Preta”.

Apesar de muitas dificuldades, nesse processo de se reinventar para viver na época conturbada da covid-19, Zeu entende que muitas lições ficam, e o gênero musical da sua banda as condicionam. “Nesse momento temos que ter mais empatia pelo próximo, saber valorizar as coisas simples. Ser um exemplo de um ser humano melhor a cada dia, tentar ajudar o outro com o que temos. Ser um transformador no seu entorno, amar e buscar o bem comum. Enfim, tudo que a essência da música reggae prega desde os anos 70”.

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