O palco do Teatro Vila Velha como campo de batalha

Por João Bertonie

Em nenhum outro teatro da cidade o público fica tão próximo dos atores quanto no Vila Velha. Em sua concepção moderna de palco, que pode lembrar as arenas romanas, os dramas das personagens no teatro são vividos fisicamente junto às pessoas da plateia, que podem ficar a menos de dois metros dos atores. Talvez por causa dessa proximidade física, o público da estreia da peça “Do Sexo da Mulher como Campo de Batalha na Guerra da Bósnia”, ocorrida da última terça-feira, 07, tenha saído do Vila emocionado, tocado pela brutalidade da violência humana tratada no espetáculo.

A violência que parece inata ao homem e assume tons berrantes no caos da guerra é um tema recorrente nos textos de Matéi Visnec, jornalista e dramaturgo romeno. Tendo seu trabalho montado pela quarta vez por Márcio Meirelles, que acrescentou os termos “do sexo” e “guerra da bósnia” no título original (“A Mulher como Campo de Batalha”), Visnec, considerado o mais desconcertante dramaturgo romeno desde Ionesco (1909 – 1994), costuma investigar as consequências das guerras vividas pelos países do Leste Europeu no fim do século passado. O autor, porém, nunca se atém somente à perspectiva crua e política da situação, debruçando-se também nas questões humanas que dizem respeito a conflitos como a Guerra da Bósnia (1992 – 1995), o que pode ser observado na família desconstruída de “A Palavra Progresso Soava Terrivelmente Falsa na Boca de Minha Mãe” e nas duas mulheres feitas em frangalhos pela guerra em “A Mulher como Campo de Batalha”.

KATE E DORRA COMO CAMPO DE BATALHA

Com a discussão de temas como limpeza étnica, sentimento nacionalista e violência contra mulher, o espetáculo trata, em pouco menos de uma hora e meia, a história da convivência de duas mulheres: Kate (Gilza Vasconcelos), uma americana que foi à Europa Oriental para auxiliar a escavar valas no chão bósnio, ao fim da guerra; e Dorra (Iana Nascimento), uma mulher local que foi violentada por um grupo étnico inimigo. Conhecemos ambas quando elas estão numa espécie de hospital, a primeira tentando cuidar da segunda. As duas mulheres foram cruelmente afetadas pela guerra e ao longo da encenação descobrimos sobre suas histórias e personalidades, enquanto elas conversam, se desentendem e se reconciliam.

A forma relação entre as duas pode ser demonstrada com o seguinte trecho: “Bom dia, Dorra. Eu trouxe as fotos de Boston, quer ver? Eu vou deixá-las aí e você pode vê-las quando quiser. Se você quiser, eu te mostro…” Esta fala, apesar de aparentemente banal, torna-se significativa no cenário da Bósnia pós-guerra. É uma tentativa de aproximação que Kate faz à Dorra. Porém, os elementos cênicos do texto parecem sugerir que esta tentativa está fadada ao fracasso: as duas mulheres, em grande parte da peça, estão separadas por uma cortina branca, a luz incindindo sempre sobre só uma delas.

A superioridade imperialista que, por vezes, sentimos em Kate – personagem que quando criança aprendeu que a Europa não é mais do que um punhado de “pedras velhas” -, e a “propulsão à barbárie”, do grupo étnico do qual Dorra faz parte, segregam as duas personagens de forma quase definitiva. “O Ocidente não honrou suas promessas, o Ocidente é uma prostituta!”, grita Dorra, a mulher violentada, no que parece ser um desabafo do próprio Matéi Visniec.

Fotos: Natácia Guimarães
Fotos: Natácia Guimarães

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Talvez o momento mais angustiante de todo o espetáculo seja quando é revelado que Dorra está grávida, em consequência do estupro coletivo que sofreu. “Ele me dói, me devora por dentro. Eu não aguento mais, Kate!” é só um dos gritos da bósnia que impactaram o público do Vila Velha. Diante desta tragédia, a americana parece tentar convencê-la a entregar-lhe a criança, no que Dorra responde, lacônica: “Eu não vou lhe dar este filho, Kate. Eu prefiro mil vezes vê-lo morto do que entregá-lo aos Estados Unidos!”.

A enorme violência que faz Dorra de vítima dialoga com a situação feminina em várias partes do mundo. O Brasil não é tão diferente da Bósnia em guerra no que diz respeito a isso, é o que pensa Iana Nascimento. Para construir sua personagem, a atriz se baseou  em pessoas próximas à ela que já sofreram violência semelhante a que sofreu a protagonista do espetáculo e em depoimentos de mulheres bósnias. “Os relatos das mulheres que foram estupradas e até escravizadas na Bósnia são muito fortes”, acrescenta.

Estima-se que, durante a Guerra da Bósnia, cerca de 20.000 a 50.000 mulheres foram violentadas, segundo pesquisas da organização Relembrando Srebrenica. Naquele contexto, como é lembrado em certo ponto do espetáculo, o estupro era usado como estratégica militar: “Nada pode desmoralizar mais o seu inimigo do que violar sua mulher”.

A atriz Giza Vasconcelos concorda com sua colega de cena quando diz que as brasileiras, ainda que não vivam sob a sombra de ameaças de guerra como na Bósnia, passam por situações tão violentas quanto às bósnias. “A mulher é violada aqui no Brasil como em qualquer outro lugar e aí quando você para pra analisar um conflito como esse, você vê como isso acontece aqui do lado e que é um assunto que a gente precisa conversar”, defende a intérprete de Kate. Giza ainda defende uma “tomada de consciência”, necessária para a reflexão deste tema aqui no Brasil. Apesar de não haver aqui casos de mulheres que são vendidas por maços de cigarros, como acontece com uma personagem de “A Palavra Progresso da Boca da Minha Mãe…”, o panorama no nosso país, na opinião da atriz, é algo que “devemos estar atentos”.

PREPARAÇÃO

Pesquisar sobre a guerra da Bósnia e a violência contra a mulher, estudar o trabalho de Matéi Visniec, procurar referências para a construção das personagens, ensaiar o difícil e longo texto do dramaturgo romeno, pensar nas intervenções cênicas e nos complexos recursos multimídia. Tudo isso poderia levar um esforço de, pelo menos, um ano. Mas o surpreendente é que o texto de Visniec foi trabalhado e levado ao palco do Teatro Vila Velha em um tempo de apenas dois meses. “Foi muito intenso”, afirma, entre risos, Giza Vasconcelos.

A atriz diz que a obra do autor romeno, muito apreciada por Márcio Meirelles e por vários outros diretores brasileiros nos últimos anos, era algo que o diretor sempre quis trabalhar, mas ainda não tinha podido pelo time de atores do Vila estar envolvido em outros projetos da Universidade Livre. “Foi um processo corrido: a gente terminou “Jango, uma Tragedya”, que foi em comemoração dos 50 anos do teatro, e aí Márcio veio com a proposta do texto”, afirma Giza.

ACESSIBILIDADE

O espetáculo aconteceu com a participação do Teatro Para Sentir, projeto de acessibilidade que garante a inclusão de pessoas com deficiência por meio de audiodescrição e tradução em libras. Um número significativo de deficientes visuais e auditivos estava presente na estreia e pôde prestigiar o intenso trabalho das atrizes e do diretor. “Como tem muito texto e muito diálogo, a áudio-descrição foi menor. A intervenção foi pequena, mas o dispositivo ajudou a compreender muito bem a peça”, disse Ednilson Sacramento, estudante de jornalismo e deficiente visual, ao fim do espetáculo.

“Do Sexo da Mulher como Campo de Batalha na Guerra da Bósnia” estreou com curta temporada de duas semanas e seis encenações. As apresentações ocorrem às terças, quartas e quintas, sempre às 20h, no palco principal do Teatro Vila Velha.

Um comentário em “O palco do Teatro Vila Velha como campo de batalha

  • 10 de outubro de 2014 a 2:10
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    O nome da atriz é GIZA VASCONCELOS

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