‘Pai, não grite com a sua filha’: estudante de psicologia fala sobre relacionamento abusivo em seu primeiro livro

O livro, que discute a naturalização do machismo através de experiências da própria autora,
foi lançado este ano na Amazon

Por: Glenda Dantas

A estudante do 10º semestre de psicologia, Míria Moraes Dantas, 24 anos, é a terceira das seis filhas de José Amandio Dantas e Valmira Moraes. Em 2011, ela saiu da zona rural de Monte Santo, no sertão da Bahia, para vir a Salvador realizar o sonho de ser psicóloga. Depois de um ano e cinco meses trabalhando e fazendo cursinho pré-vestibular, a jovem conseguiu ingressar no curso de psicologia da UFBA. Agora, prestes a se formar, pretende atuar na área de psicologia do trabalho, para auxiliar minorias sociais tanto na conquista de empregos, quanto nas questões relacionadas à saúde e à seguridade.

Paralelo a isso, graças à sua avidez pela leitura e escrita, ela lançou seu primeiro livro “Pai, não grite com a sua filha”, este ano, onde traça um comparativo entre um relacionamento abusivo em que esteve e algumas implicações da criação paterna durante a infância.

Em entrevista à Agenda Arte e Cultura, Míria fala sobre o primeiro livro, trabalho que é fruto de uma carta que ela escreveu para o pai em 2017. Confira abaixo:

 

Agenda Arte e Cultura: O livro surgiu a partir de quê?
Míria Moraes: Surgiu a partir de um período de seis meses em que eu fiquei sem ver o meu pai e sem contato físico com o meu ex-namorado. No dia dos pais de 2017 eu decidi escrever uma carta para o meu pai, já que não poderia encontrá-lo no dia dos pais. Na carta eu explico a ele o porquê do término do meu relacionamento, que aconteceu quando voltei de uma viagem, e sobre o quanto ele foi duro comigo na infância e as reverberações disso hoje na minha vida. Falo sobre como o meu pai era agressivo verbalmente e o quanto isso me desestabilizava a ponto de eu não conseguir reagir. Foi durante a construção da carta que eu pensei em fazer o livro, já que estava tomando uma proporção enorme e era uma texto que permitia auxiliar outras pessoas a se darem conta de que poderiam estar passando por situações semelhantes às minhas, de agressão verbal e psicológica, tanto vinda do meu pai, como do meu namorado.

AAC: Em qual momento você percebeu que estava naturalizando situações abusivas, muito por causa de traumas da infância?
Míria Moraes: Antes de escrever a carta eu já tinha tido noção de que naturalizava comportamentos abusivos do meu ex-namorado, mas foi quando eu viajei que comecei a perceber o quanto ele era agressivo, pois ele gritava comigo por telefone e me reprimia muito. Me dei conta de que quando estávamos perto nós brigávamos, mas a gente se reconciliava, pois se demonstrava muito amoroso, me trazia flores, presentes, me pedia desculpas e eu aceitava, só que isso começou a afetar minhas relações com meus amigos e com a minha família. Nos dias em que a gente brigava e que ele era agressivo, minha única reação era chorar, só que eu chorava a ponto de não conseguir nem falar. Reação esta que eu tinha na infância quando meu pai agia dessa forma.

É uma parte específica e hostil da criação que ele teve e acabou reproduzindo na minha criação.

AAC: Qual a importância de falar e escrever sobre relacionamento abusivo?
Míria Moraes: Eu respondo essa pergunta com um poema que escrevi: “Quando a mulher fala, ela quebra um silêncio histórico”. Eu acredito que quando contamos nossas histórias, principalmente quando trago coisas sutis e do cotidiano, outras meninas podem começar a refletir e ter essa percepção, para assim poderem se empoderar e reagir a situações que nos oprimem. Mas além das mulheres, quero compartilhar isso também com os homens, essa é a razão de o livro ser uma carta escrita a um pai, porque acredito que devemos construir um feminismo que dialogue com os homens. O diálogo pra mim é um mecanismo de desenvolver as relações de maneira positiva e saudável. 

AAC: Como foi quando você mostrou a carta ao seu pai? Mudou alguma coisa na relação de vocês?
Míria Moraes: Sim, ele chorou muito e me perguntou diversas vezes se ele havia sido um pai ruim. Mas na carta eu explico que essa é uma parte específica e hostil da criação que ele teve e acabou reproduzindo na minha criação. Isso prejudicou não somente minha relação com ele, mas também os meus relacionamentos amorosos. Meu pai foi criado num ambiente familiar extremamente machista. Nós somos da zona rural, então é algo muito mais enraizado e difícil de desconstruir, mas eu percebi que depois da carta, ele se mostrou muito mais aberto ao diálogo, e tem se desenvolvido mais, e se policia nos gritos e nas brigas.

AAC: E a reação da sua mãe e irmãs?
Míria Moraes: Minha mãe reconheceu todos os momentos que trago na carta. Minhas irmãs caçulas ainda não tinham nascido no período, então elas não presenciaram as situações que relato. A mais velha foi a que sentiu bastante, mas eu ainda não tive a oportunidade de me encontrar com ela para conversarmos pessoalmente. Ela me falou sobre o quanto ela se sentiu desnuda, pois a vida dela também está descrita ali e por concordar que foi tudo aquilo mesmo.  

AAC: Como a escrita te ajudou a liberar sentimentos reprimidos e a compreender a situações que você passou?
Míria Moraes – Eu me expresso melhor escrevendo do que falando. Escrevo desde pequena, ganhei até um prêmio de poesia no meu primeiro ano do ensino médio. Sempre escrevi sobre as coisas que estavam ao meu redor e outras questões que são do mundo. Meu primeiro poema foi sobre o sertão, que é de onde eu sou, então eu escrevia muito sobre o porquê de não chover, por exemplo. A escrita me ajuda a liberar muitos sentimentos que eu tenho guardado e é inclusive a forma que eu encontrei para militar e compartilhar minhas situações. 

 

AAC: Tem alguma autora/livro que tenha te inspirado/encorajado na escrita do seu livro?
Míria Moraes: Eu gosto muito da Chimamanda Adichie. Antes de escrever o meu livro eu li o dela, “Sejamos todos feministas (2014)”. O que mais gosto nela é a forma da escrita, que é muito simples e eu sempre gostei de escrever de forma simples, porque pessoas que entendem uma leitura complicada vão facilmente entender uma escrita simples, mas quem entende uma leitura simples, não vai facilmente entender o complicado, então eu peguei isso de referência, para que minha escrita se aproxime de todas as pessoas. Rupi Kaur, escritora de “Outros jeitos de usar a boca (2014)” também é uma inspiração. Eu acho esse livro dela muito forte, e dela eu adquiri a coragem de expressar para o mundo o que guardo dentro de mim. Além delas, tem a Djamilla Ribeiro, que eu acompanho por vídeos e recentemente obtive a oportunidade de ler “O que é lugar de fala? (2017)”, que me ajudou a compreender que, apesar de sermos todas mulheres, existem intersecções que perpassam questões de raça e gênero.

AAC: Você acha que nós, mulheres, estamos evoluindo na conquista do lugar de fala?
M
íria Moraes: Sim, e é muito importante nós conquistarmos o nosso lugar de fala, já que isso nos foi negado por tanto tempo, mas lembrando que eu falo do lugar de mulher branca, que é diferente do lugar de fala da mulher lésbica e da mulher negra. Temos que considerar também que existem mulheres que não estão seguras para falar, pois correm risco de vida, e isso tudo tem que ser levado em consideração, pois conquistar o lugar de fala é pensar que todas as mulheres devem possuir o mesmo direito e eu espero que esse livro auxilie nisso.

AAC: Sobre a arte da capa do livro, qual o significado e quem produziu?
Míria Moraes: Quando eu escrevi o livro eu não lembrei que ele teria que ter uma capa. No momento que me dei conta disso, eu convidei alguns amigos, já que não tinha dinheiro para pagar outras pessoas, e eles que me ajudaram na edição, editoração e o Rafael Neves que me ajudou na arte da capa. Eu convidei ele pois sabia que ele é bom, porém conversei antes para ver se ele entenderia a proposta do livro e se na ilustração da capa ele iria conseguir traduzir o livro. Depois de ele ler, me passou as considerações e conversamos durante um dia inteiro sobre isso e eu falei que queria que a capa tivesse uma carga simbólica de mim, mas que eu não estivesse sozinha. Que fosse uma figura feminina, mas que qualquer mulher pudesse se identificar. Então ele fez essa arte incrível, que representa uma menina que foi enfraquecida, porém que se levanta e se auto-analisa. Essa é uma das propostas do livro, a auto-análise, pois quando a gente se conhece, evitamos muito sofrimento. É uma mulher que se empodera aos poucos, pois esse não é um processo rápido.

Temos que considerar também que existem mulheres que não estão seguras para falar, pois correm risco de vida, e isso tudo tem que ser levado em consideração

AAC: No curso de psicologia vocês estudam essa temática?
Míria Moraes: Essas questões perpassam constantemente, independente da disciplina que estudamos, pois estamos sempre nos preocupando em questionar todo e qualquer tipo de desigualdade. É um compromisso ético da psicologia e deveria ser de qualquer área de atuação.

AAC: Pretende escrever outros livros? Se sim, continuará nessa temática?
Míria Moraes: Eu já estou com um livro de poemas pronto, que é o gênero literário que eu tenho mais costume de escrever. Ele é uma espécie de sequência do “Pai, não grite com a sua filha”, porém não aponta apenas as desigualdades de gênero. Nele eu falo também sobre a conjuntura política do país, aborto, sexo, amor. É um misto de assuntos e é uma realização, pois eu sempre quis lançar um livro de poemas. Ele possui 100 poemas e se chama “Sem poemas”. Faltam apenas alguns detalhes das ilustrações para que eu lance ele ainda este ano.

AAC: Você pretende ter seus livros em versões impressas?
Míria Moraes: Sim, eu sempre quis e acho que o livro físico alcança mais pessoas, pois considero e-book mais complexo, tanto para a leitura, já que nem todo mundo tem acesso, além de eu considerar o livro impresso mais presenteável.  

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