Café Científico discute o desafio urbanístico de Salvador

E se os condomínios privados crescessem, e crescessem… crescessem tanto, a ponto de ocupar áreas equivalentes a de cidades?

*Por Vanice da Mata

A reflexão acima fez parte da discussão da palestra “Desafios da Cidade: que Urbanismo”, ministrada por Ana Fernandes, professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia – UFBA, no último 5 de julho. A palestra fez parte da programação do Café Científico Salvador, na Biblioteca Pública dos Barris. Em pouco mais de 2 horas e meia,  Ana Fernandes discorreu sobre o tema e foi interpelada por uma plateia formada por estudantes e professores da área de arquitetura e urbanismo, membros de ONG’s e curiosos, depois de apresentar alguns aspectos constitutivos do Urbanismo enquanto campo social. A palestrante também expôs nuances e desafios que a edificação da urbis apresenta no contexto das grandes cidades, a exemplo de Salvador, apontando possíveis necessidades de enfrentamento e perspectivas futuras da área por aqui.

Do ponto de vista histórico, o campo começa a dar seus primeiros passos a partir do século XIX e no, Brasil, tem sido vinculado à área da Arquitetura. “O urbanismo é uma área interdisciplinar por natureza. Nasce da crise da cidade liberal e da necessidade de regular o seu crescimento. Ela tenta entender como a cidade funciona e como posso agir sobre ela”, declara Ana Fernandes. Segundo ela, a Universidade do Estado da Bahia é a única instituição brasileira a ter um curso exclusivamente de Urbanismo. Todos os demais estão vinculados ao ensino de Arquitetura.

Urbanismo corporativo – Segundo a professora, a cidade de Salvador possui bases coloniais e isto é um dado importante para tentar compreender o caráter do urbanismo local. Ana qualificou de “urbanismo corporativo” o que vivencia a primeira capital do Brasil. Protagonizado pelas grandes corporações, operadoras de significativas somas financeiras, este fenômeno é marcado localmente pela ação dos capitais imobiliário e bancário, e por intensos processos de marketing e propaganda, “atuando de forma articulada e simultânea em paralelo ao setor público. Esta centralização do capital, das corporações, gera uma ordem urbanística, ou seja: regras de uso e operação do solo. Assim, as decisões que deveriam ser técnicas, passam a ser de natureza política. E, como consequência, esta ordem das coisas institui, dentre outras coisas, a necessidade da inserção corporativa do território marcada pela competitividade; escalas de intervenção crescentes; e a fragmentação, já que estes investimentos são pensados separadamente, descolados dos impactos para a vida da cidade”, destaca a palestrante.  Como visto recentemente no contexto da Copa das Confederações, os “grupos corporativos investem a partir de fundos públicos e, dada a centralidade destas decisões privadas, são elas que vão decidir o quê e como vai acontecer. É a política se tornando refém da economia”, constata Ana.

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A professora Ana Fernandes encerrou sua fala trazendo alguns exemplos de projetos que, a seu ver, representam bem este modelo de “urbanismo corporativo”: a construção da Avenida Atlântica que, se executada, impactará o Parque de Pituaçu e adjacências; a reurbanização da orla da Boa Viagem até o Mont Serrat, na Península de Itapagipe; e a própria Linha Viva, exemplo de modelo que, para Ana, representa três palavras de ordem do planejamento das cidades regido por corporações: fluxo, rapidez e privatização.

Como saldo, a pesquisadora da UFBA evidencia que o urbanismo corporativista revela “a incapacidade de olhar o território, sem absorver a complexidade do espaço urbano”. Pessoas, histórias, necessidades ambientais e coletivas são preteridas em detrimento da prioridade ao capital. Ana destacou projetos como o Le Parc, construído numa área equivalente a 10 ha, ou o Horto Bela Vista, em 32 ha, que ocupam respectivamente 1/6 e ½ de área equivalente ao bairro da Barra, de extensão territorial em torno de 60 ha cuja dinâmica social foi fruto de anos de uso e ocupação orgânica do território. Em sua fala a professora Ana apontou a predominância do que chamou de “cidades-bolha” – um modelo de ‘soluções’ urbanísticas baseado em cidades-franquia, onde há a restrição do problema das cidades à gramática do negócio e uma consequente subtração do espaço público, denunciando que o que se produz, ao  final , não é cidade.

Saídas possíveis – Mas nem tudo parece estar perdido. Na visão de Ana Fernandes os recentes protestos vivenciados em escala nacional expressam “os limites desta forma de produção das cidades. Acredito que o urbanismo seja social por definição e que, portanto, é incompatível com sua redução à esfera privada. Esta é a aposta”, concluiu.

O engenheiro Rogério, representante do “Movimento Desocupa” e do Fórum “A cidade é Nossa”, fez um chamamento aos presentes para que levem no dia 11 de julho ao atual prefeito, ACM Neto, demandas e irregularidades de natureza local. A Câmara de Vereadores promove nesta data audiência pública para discutir a situação das barracas da orla, a partir das 14h. Segundo o engenheiro, “cada emenda do PDDU votado em 2007 pela Câmara de Salvador tem nome e CPF para beneficiar”. E arrematou: “esta cidade tem dono, e ele é a ADEMI” (Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário).

Na sua próxima edição, ainda neste mês de julho, o Café Científico Salvador traz o tema Biofilmes bacterianos e saúde humana. Acontecendo desde 2006, o evento propõe-se a “trazer temas de ciência para a cultura da cidade, para que as pessoas possam vir a este espaço para discutir ciência”. “Salvador é muito carente de locais que promovam este tipo de discussão”, avalia o coordenador do evento e professor do Instituto de Biologia da UFBA, Charbel Niño El-Hani.   Gratuito, o encontro acontece mensalmente no auditório Katia Mattoso da Biblioteca Pública dos Barris, e traz pessoas da comunidade científica baiana. A promoção é do Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA / UEFS), pela Biblioteca Pública dos Barris e pela Livraria LDM – Livraria Multicampi.

Outros dois ramos do Café Científico – o Café Científico UFBA e o Café Científico ACTA (Semana de Arte, Cultura, Ciência e Tecnologia da UFBA) – se propõem a “oxigenar” a cidade em diferentes segmentos: o primeiro, em parceria com a Pró-reitoria de Extensão da UFBA, traz trimestralmente pesquisadores de outros estados ou países tendo como público-alvo a comunidade baiana em geral; o segundo possui um foco na comunidade acadêmica da Semana ACTA.

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