Cuíca, o irreverente cordelista baiano do século XX

“Cuíca de Santo Amaro, o poeta mais temido da Bahia” foi exibido na última quarta-feira no CineFacom

*Por Debora Rezende

O documentário “Cuíca de Santo Amaro, o poeta mais temido da Bahia” foi exibido na noite de quarta-feira, 15 de janeiro, no auditório da Faculdade de Comunicação da UFBA. Com direito a um bate-papo com um dos diretores do longa-metragem, Josias Pires, e com a professora de Cinema da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Ana Rosa Marques, o evento promovido pelo CineFacom – agora projeto de extensão pela Pró-Reitoria de Extensão da UFBA (Proext) – contou com a participação de alunos e professores da universidade.

Com 74 minutos de duração, o documentário é o produto do trabalho de pesquisa de Joel de Almeida e Josias Pires, diretores do filme sobre a vida e a obra de José Gomes, o Cuíca de Santo Amaro.  A importância do personagem para o cenário cultural da Bahia é inegável. Cuíca era um cordelista que circulava pela Bahia do século XX, sendo considerado antes de tudo como um verdadeiro comunicador. Seus ácidos cordéis, com forte temática social, eram carregados de sarcasmo e ele não hesitava em fazer denúncias ou revelações públicas – seja sobre vizinhos, comerciantes ou autoridades políticas. “O Cuíca era um cronista social”, disse Josias Pires em debate posterior à exibição do filme no CineFacom. “Estar na boca do Cuíca de Santo Amaro era uma perdição”.

Um dos diretores do documentário, Josias Pires. Foto: Gustavo Salgado
Um dos diretores do documentário, Josias Pires. Foto: Gustavo Salgado

José Gomes, natural de Salvador, recebeu a alcunha de “Cuíca de Santo Amaro” pelas inúmeras viagens que fazia ao município. Mas foi no centro de Salvador que o personagem ganhou fama com seus cordéis. “Cuíca” atuava como um comunicador, tendo sido considerado, posteriormente, como o maior que a Bahia já teve. Em seus trabalhos, o Cuíca de Santo Amaro falava sobre a vida cotidiana e política de Salvador, trazendo ao conhecimento público aquilo que muitas vezes os jornais não noticiavam – por interesses econômicos e acordos políticos, principalmente. A figura incorporada por Gomes funcionava sob a dualidade de ser um herói e um anti-herói. Ao mesmo tempo em que ele trazia ao conhecimento público fatos que, de outro modo, não seriam compartilhados – escândalos políticos e sociais –, Cuíca não hesitava em publicar ou não uma informação quando recebia dinheiro para tal. “Ele tinha uma verdade que nenhum jornalista assume quando recebe dinheiro para publicar alguma coisa. Ele falava quando a matéria era paga”, diz o diretor e roteirista Josias Pires.

A irreverência do Cuíca de Santo Amaro pode ser associada, e tem sido, com a figura do advogado e poeta Gregório de Matos, que ficou conhecido no cenário político-literário como Boca do Inferno justamente pelo papel de denúncia social que desempenhava no período do Brasil colonial – e da Bahia – do século XVII, conhecido por sua poesia satírica sobre autoridades políticas da época. Cuíca, o Boca do Inferno da Bahia de meados do século XIX, angariou fama semelhante.

O filme de Josias Pires e Joel de Almeida assumiu o desafio de trazer ao público um pouco mais sobre o Cuíca de Santo Amaro e o seu trabalho com a literatura de cordel e o jornalismo de denúncia. A tarefa não foi fácil. Segundo Pires, que esteve presente na exibição do documentário no auditório da Facom, “não há nenhum lugar com obra do Cuíca toda organizada, isso não existe”. Para que o filme pudesse ser realizado, a equipe foi mobilizada para um grande trabalho de pesquisa a fim de reunir registros sobre um personagem que possui poucas fotografias, apenas uma participação no filme “A Grande Feira”, de Roberto Pires, e nenhum registro sonoro.

Para suprir a carência de registros da vida e obra de José Gomes, são usados no documentário depoimentos de pessoas que conviveram com o Cuíca de Santo Amaro – personalidades como Mario Cravo Jr. e Muniz Sodré dão seus depoimentos para a construção do longa-metragem sobre “o poeta mais temido da Bahia”, além de outros comerciantes, sambistas e escritores que se relacionaram com o cordelista. Mas os depoimentos não são os únicos recursos utilizados no filme para resgatar a trajetória do Cuíca: são utilizados também alguns exemplares dos cordéis de José Gomes, junto às ilustrações feitas na época por Sinézio Alves.

Auditório da Facom recebeu a exibição do documentário na última quarta-feira, 16 Foto: Gustavo Salgado
Auditório da Facom recebeu a exibição do documentário na última quarta-feira, 16
Foto: Gustavo Salgado

O projeto de realizar um documentário sobre o Cuíca de Santo Amaro nasceu em 2005, da intenção de homenagear o personagem no ano de seu centenário, em 2007. Premiado pelo edital Petrobras Cultural, os recursos para a execução do filme só foram disponibilizados, no entanto, em 2008. Segundo Josias Pires, assim que o documentário foi concluído, em janeiro de 2012, ele foi selecionado para o 17º festival internacional de documentários, “É Tudo Verdade”. A trajetória de exibição de “Cuíca de Santo Amaro, o poeta mais temido da Bahia”  já passou por São Paulo, Rio de Janeiro e na Venezuela, além de outras cidades brasileiras onde ganhou destaque no circuito alternativo de cinema. “Participamos da 16ª Mostra de Cinema de Tiradentes, uma mostra muito relevante. Lá foi feita uma exibição em praça pública, 400 cadeiras, um som maravilhoso”, conta Pires. “Foi exibido também no Festival Internacional de Cinema de Arquivo (RECINE), exatamente por causa dessa pesquisa de arquivo que o filme tem”, finaliza.

Em conversa com a Agenda Arte e Cultura da UFBA, Josias Pires refletiu sobre o papel de produções culturais como o documentário sobre o Cuíca de Santo Amaro e sua importância para a construção de um circuito alternativo de cinema. Numa era em que o cinema americano e as superproduções cada vez mais tomam conta do circuito comercial, as obras que trazem aspectos da cultura nacional apresentam dificuldade em encontrar o seu espaço. “O filme não vai disputar com os americanos”, diz Pires sobre a circulação do documentário no circuito comercial. “O público do Iguatemi, por exemplo, é o público do cinema americano: quer ver comédia, filmes de ação, muita morte, bomba, explosão, muitos efeitos especiais, e não está interessado em nossas histórias. A nossa formação cultural é influenciada profundamente pela cultura popular americana”, explica.

A demanda por produções alternativas e que abordem aspectos da cultura brasileira, no entanto, não é pequena, como ressalta o diretor e roteirista Josias Pires. As sessões de exibição do longa-metragem têm angariado um bom público. “Foi muito rico esse processo de circulação do filme pelo interior e aponta exatamente para o potencial de um circuito alternativo. É possível despertar o interesse dos estudantes. As pessoas não têm acesso a esses filmes, a essas produções culturais”, diz.

Nos centros universitários, a exibição da obra tem sido satisfatória. A edição especial do CineFacom, na quarta-feira passada, não fugiu a isso. No debate com a professora de Cinema Ana Rosa Marques, foram suscitadas questões acerca da produção, pesquisa e repercussão do filme. Durante o bate-papo, alunos, professores e demais espectadores da amostra foram convidados a tirar suas dúvidas acerca do longa-metragem. Josias Pires respondeu perguntas e explicou a maneira como o Cuíca de Santo Amaro atuava na circulação de informação na capital baiana do século passado. Pires explicou ainda a relação do personagem com o contexto da sociedade conservadora da época. Os cordelistas, segundo Pires, eram machistas, racistas e sexistas, e “Cuíca era apenas uma pequena expressão poética e popular disso”, explicou durante o bate-papo.

Foto: Gustavo Salgado
Foto: Gustavo Salgado

CineFacom O CineFacom nasceu da iniciativa do Centro Acadêmico Vladimir Herzog. A ideia do projeto é fazer circular pelo meio acadêmico a produção audiovisual de estudantes da Universidade Federal da Bahia, bem como obras da cinematografia baiana e brasileira. A estudante de Produção Cultural Camila Brito, 23, uma das responsáveis pela organização do CineFacom, explica como o evento se tornou um projeto de extensão. Hoje custeado pela Pró-Reitoria de Extensão da UFBA, o CineFacom venceu o edital que abarcava eventos na universidade e hoje conta com o apoio da Proext na organização das sessões quinzenais da mostra. “A gente conseguiu imprimir os programas e cartazes. Além disso, conseguimos também emitir os certificados [de presença] pela Proext, e a bolsa para que o estudante pudesse realmente se dedicar mais ainda para esse projeto que já vai completar um ano no mês que vem”, explica.

Apesar dos esforços de divulgação da equipe do CineFacom e dos bons filmes exibidos nas sessões, a média de público não é alta. A exibição do documentário sobre o Cuíca de Santo Amaro contou com cerca de vinte e cinco espectadores. Sobre o número de presentes nas edições da mostra, Camila conta ainda que não é sempre possível prever quantas pessoas comparecerão. “Já teve casos de 20 pessoas confirmarem presença no evento e, depois, havia 50 pessoas aqui”, relata.

O uso de cartazes como divulgação tem dado resultados, no entanto. Foi assim que a estudante do segundo semestre de B.I. de Artes, Thalita Veira dos Santos, ficou sabendo do evento. Pela primeira vez no CineFacom, na exibição da última quarta-feira, Thalita conta que já tinha ouvido falar das mostras, mas nunca tinha comparecido. Foi a divulgação de “Cuíca de Santo Amaro, o poeta mais temido da Bahia” que a levou até o auditório da Facom. Segundo a estudante, a história irreverente do cordelista a motivou a comparecer ao CineFacom e, depois da experiência, Thalita diz que pretende voltar sempre que possível. “É interessante a possibilidade de ver novos nomes surgindo”, diz.

O CineFacom acontece quinzenalmente às quartas-feiras, sempre às 19h, no auditório da Faculdade de Comunicação da UFBA. Para maiores informações, acesse o site.

 

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