Podcasts baianos investem em produções sobre a cultura local; conheça alguns

A Agenda traz dicas de podcasts que falam sobre a cultura do Estado em diferentes perspectivas

Maysa Polcri 

“A cidade da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa como o verde do mar”, escreveu Jorge Amado no romance Capitães da Areia,  na década de 30. Ainda hoje, o que não falta é gente em busca de desvendar os mistérios dessa terra. Na podosfera, universo dos podcasts, são muitos os programas que enveredam pelos enigmas da baianidade em suas mais diversas versões, tais como literatura, humor, arquitetura e música.

Mesmo antes da pandemia, os brasileiros já disparavam como grandes consumidores de podcasts quando comparados ao resto do mundo. De acordo com pesquisas da plataforma Deezer, entre os anos de 2018 e 2019 o consumo cresceu 67% no país. Com as restrições de circulação impostas pela pandemia da covid-19 e as pessoas procurando mais conteúdos para se entreterem dentro de casa, o consumo de podcasts dobrou no segundo trimestre de 2020, segundo dados do Spotify. 

Se o consumo cresce, a oferta também: cada vez mais podcasters aparecem para agradar e se encaixar nas diferentes bolhas do tecido social. Na Bahia, os editais e prêmios previstos pela Lei Aldir Blanc de auxílio à cultura, fizeram crescer a produção de podcasts e pelo menos 14 projetos já foram contemplados e estão no ar.

Hugo Mansur já era ouvinte assíduo de podcasts enquanto concluía seu mestrado no Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA e teve a ideia de elaborar uma disciplina que mapeasse a arquitetura de edifícios que levam o nome de orixás. Porém, o projeto só pôde ser colocado em prática um ano e meio depois e, com uma surpresa, em formato de podcast. A ideia de criar o CEP-S4NT0, podcast predial, surgiu com a publicação do edital do prêmio Jaime Sodré de Patrimônio Cultura, via Lei Aldir Blanc.

“Acabou que esse foi o formato que vingou, tanto pelo os requisitos do edital, como pelas restrições sanitárias impostas pela pandemia”, afirma Hugo.

Em cada um dos sete episódios do CEP-S4NT0, um edifício localizado no Centro Antigo de Salvador, que leva o nome de algum orixá, é apresentado aos ouvintes. A história dos prédios, entre eles Orixás Center e Ossain, é esmiuçada em narrativas particularmente baianas, como já adianta a descrição do podcast. Nas vozes das locutoras Daiana Damasceno e Evelyn Sacramento, os episódios divulgam de forma didática o resultado do trabalho de oito pesquisadores, autodenominados “síndicos” do projeto.

Os pesquisadores descobriram que parte significativa dos edifícios foram obra da Luiz Pereira de Araújo Limitada, a "construtora dos orixás” (Foto: Marielson Carvalho)
Os pesquisadores descobriram que parte significativa dos edifícios foram obra da Luiz Pereira de Araújo Limitada, a “construtora dos orixás” (Foto: Marielson Carvalho)

Com mais de 600 plays, 90% deles na plataforma Spotify, Hugo, roteirista e pesquisador, afirma que o público alvo do CEP-S4NT0 desde o início foram os transeuntes do Centro. Por isso, a equipe colou nos arredores dos edifícios QR-Codes que, ao serem escaneados, direcionam o público ao podcast, como forma de devolver a pesquisa aos moradores da região.

“Os feedbacks são muito positivos, percebi que era uma inquietação da cidade, e não só minha, saber um pouco mais sobre esses prédios”, diz. Nas redes sociais, a equipe já é cobrada para retratar outros edifícios com nomes de orixás espalhados pela cidade.

Edifício localizado no bairro de Nazaré (Foto: Marielson Carvalho)
Edifício localizado no bairro de Nazaré (Foto: Marielson Carvalho)

Laranjadas soteropolitanas
O ponto chave do sucesso do estudante de artes cênicas Danilo Santiago, podcaster do Várias Queixas (VQP), é a identificação que seus mais de 12 mil ouvintes sentem ao escutar as histórias de como é viver na Bahia. Com uma receita que inclui criatividade, alto astral e muita regionalidade, o VQ Podcast foi uma forma de Danilo se desligar das suas angústias e tentar alegrar pessoas que também estavam passando por momentos difíceis por conta da pandemia. Em episódios como “Tomei Pau no Paredão” e “O Dia que o Pivete me Chamou pra Trocar”, Danilo pretende entregar um manual de como sobreviver na capital baiana enquanto toca em temas sensíveis, como a desconstrução da masculinidade. 

Apesar da grande audiência, os episódios do Várias Queixas dificilmente vão ao ar sem antes enfrentar um perrengue, afinal, o podcast é independente e sobrevive com os incentivos de um clube de membros que arrecada em média 250 reais por mês. “Não é que não temos patrocínio porque somos anarquistas revolucionários (risos). Era tanta coisa na cabeça que perdemos o prazo de inscrição para os editais da Lei Aldir Blanc”, conta Danilo. 

O humorista Danilo Santiago em apresentação de stand up em fevereiro deste ano (Foto: Rafael Rodrigues)
O humorista Danilo Santiago em apresentação de stand up em fevereiro deste ano (Foto: Rafael Rodrigues)

O VQP, mesmo com as dificuldades, já lançou mais de trinta episódios desde que foi lançado em abril do ano passado e costuma receber doações de ouvintes que já colaboraram doando computador, microfone e fone que melhoraram a qualidade técnica do programa. 

Apesar de já ter tentado criar outros projetos antes do podcast, O VQP foi a primeira iniciativa  de audiovisual de Danilo que realmente engatou. Para ele, o formato do programa exige muita dedicação e, por isso, a equipe composta por quatro integrantes se reúne semanalmente para discutir as pautas que serão temas: “Não é fácil criar um conteúdo que faça a pessoa passar 15, 20 minutos me ouvindo sem ter nenhum outro estímulo além da voz”, desabafa. O processo, desde a ideia de Danilo e roteirização até a publicação do episódio nas plataformas, dura em média 25 dias. 

Recôncavo em cena
Apesar de ter persistido por um ano sem nenhum incentivo, em 2019 dificuldades técnicas de gravação interromperam as atividades do podcast De Hoje a Oito, criado em Cachoeira, que só pode ser retomado em fevereiro deste ano com a série “Tramas Atlânticas: verbo negro em travessia”, agora com recursos da Lei Aldir Blanc.  O incentivo proporcionou que, pela primeira vez em quatro anos, as pessoas envolvidas na produção do podcast literário tivessem reconhecimento financeiro, além de contratação de assessoria, criação de site e viabilização das gravações em estúdio.

Com a leitura dramática de crônicas, contos e poesias, sonoplastia original e entrevistas, a nova série de sete episódios se embrenha no universo literário de autores negros a partir de suas relações ancestrais com o território africano. Em cada episódio semanal, um autor e sua obra são apresentados e esmiuçados em narrativas afrodiaspóricas de arrepiar.

Grande parte dos autores convidados para participarem do De Hoje a Oito já eram velhos conhecidos da equipe por residirem ou já terem morado em Cachoeira e fazerem parte da cena cultural da cidade. Além desses, o projeto contou com muita pesquisa literária que rendeu ao podcast o prêmio Select de Arte e Educação no final de 2020. 

Inicialmente dentro da rádio comunitária Olha a Pititinga, o De Hoje a Oito tinha o objetivo de divulgar e contribuir com a literatura que vem se desenvolvendo na região, mas o programa logo cresceu e alterou seu formato para atender um público maior e mais diverso. “Com a necessidade de romper fronteiras, o programa se tornou também um podcast, ampliando também o objetivo de simples divulgação para real fomento à discussão literária”, explica a idealizadora e roteirista Andressa dos Prazeres. 

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