Primeira vez na Flica

Por João Bertonie

Depois de duas horas de estrada e cinco CDs ouvidos, chego em Cachoeira. Quando desço do carro, estou em frente a uma feira de rua gigante, daquelas com pessoas gritando e frutas pelo chão. Nada muito diferente de outras cidades do interior. Alguns passos adiante, vejo que não estou em uma cidade qualquer. Chão de pedras irregulares, casarões de mais de 200 anos, prédios barrocos, casinhas coloridas, ladeiras. A impressão é de que estou em um Pelourinho gigante. Só que sem os vendedores insistentes e as baianas obstinadas em tirar fotos.

Depois de conseguir me perder em uma cidade cujo tamanho parece possível de assemelhar-se ao de um bairro de Salvador, consigo me situar, localizando um fluxo considerável de pessoas em uma praça e me dirijo até ela. Como toda boa cidade interiorana, Cachoeira é feita de mil praças, com velhinhos com camisa desabotoada jogando dominó e tomando cerveja. Lá, um casal vestido de azul tentava explicar algo – devo dizer que não entendi exatamente o quê – bem didaticamente a um grupo volumoso de crianças. Era a Fliquinha que estava acontecendo, parte da Festa Literária de Cachoeira, destinada aos pequenos. Meu primeiro contato com a Flica foi exatamente com a filha dela.

Metros à frente, depois de enfrentar o sol do Recôncavo nessa caminhada, chego ao Convento do Carmo, para a Flica propriamente dita. O espaço, que ano que vem completa seu 300º aniversário, sediou todas as mesas do evento, inclusive a que eu estava indo assistir naquele momento. Era uma conversa com o diretor baiano Márcio Meirelles e o autor romeno Matéi Visniec, duas autoridades quando o tema é teatro. O bate-papo foi bem proveitoso. É sempre bom sentar e ouvir o que artistas veteranos têm a dizer.

Outras mesas que assisti na Flica foram bem interessantes. Talvez a mais curiosa delas foi a primeira da tarde de sábado, na qual os escritores Dênisson Padilha Filho, nascido na Bahia, e Ondjaki, de Angola, conversaram sobre literatura, sem mediação, e regados a doses generosas de conhaque. A mediadora, Ísis Moraes, tinha se atrasado por causa de uma mudança imprevista nos horários das mesas. A impressão que ficou foi que a falta de mediadores – com o ligeiro auxílio do álcool – tornou as conversas nas mesas bem mais fluidas e agradáveis.

Também foram marcantes as homenagens feitas nesta quarta edição da festa literária. João Ubaldo Ribeiro, autor de “Viva o Povo Brasileiro!” e “A Casa dos Budas Ditosos”, por exemplo, teve sua vida celebrada de um jeito diferente por três amigos pessoais dele: Geraldo Carneiro, Fernando Vito e Ana Maria Machado – esta última, para mim, uma autora tão brilhante quanto o próprio João. Os três dedicaram-se a contar casos e histórias memoráveis do escritor baiano que faleceu em julho deste ano, como a vez em que ele arquitetou uma pegadinha para um amigo comunista em pleno 1964, complexa e bem pensada demais para ser descrita em um parágrafo.

O momento mais importante do evento foi quando quase 700 pessoas lotaram o Convento para ver e ouvir Mãe Stella d’Oxóssi, a autora homenageada da edição. A escritora e mãe-de-santo respondeu perguntas feitas pelo mediador da mesa, o phD em História da Cultura Negra, Jaime Sodré, sempre no tom materno que se espera de uma anciã.

Minha primeira experiência na Flica e na Cidade Heroica contou com momentos incríveis, como o samba de roda até às duas da manhã na praça, e outros nem tanto. As pizzas que demoravam duas horas para ficarem prontas desagradavam tanto quanto às cervejas, sempre quentes. A maniçoba, prato típico da região, era artigo raro, prova de que os restaurantes ainda não se adaptaram ao volume de turistas nesse período. Mesmo assim, ao final da equação, não dá para não pensar que na quinta edição, estarei lá de novo.

Fotos: Daniele Rodrigues/Flica 2014

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